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O Código do Consumidor e a Competência Territorial das Ações - Um Novo Enfoque

O Código do Consumidor e suas implicações ético-legais no exercício médico

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O Código do Consumidor e a Competência Territorial das Ações - Um Novo Enfoque    


Rafael Nichele

        Entre as tantas novidades introduzidas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), uma das mais significativas, no âmbito do direito processual civil, reside na possibilidade do consumidor ingressar com a ação judicial no foro do seu domicílio (art. 101, I, da Lei 8.078/90). Desse modo, com o advento da legislação especial, a regra contida no art. 94 do Código de Processo Civil estaria, em princípio, derrogada, no que tange às relações de consumo.

        Em razão do mencionado dispositivo legal, o foro competente para as ações judiciais embasadas no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), isto é, a circunscrição territorial judiciária competente para processar e julgar os litígios decorrentes do mercado de consumo, poderá ser sempre a do domicílio do consumidor, basta que o mesmo faça esta opção quando do ajuizamento da demanda, sendo a estipulação contratual que dificulte ou impeça o seu acesso ao Poder Judiciário nula de pleno direito.

        Entretanto, existem situações em que a aplicação irrestrita do art. 101, I, do CDC, mesmo no âmbito das relações de consumo implicam, ao nosso sentir, em verdadeiro desequilíbrio da relação jurídica (consumidor/fornecedor) e quebra do novo paradigma da boa-fé. Se por um lado o consumidor não pode ser afetado com uma estipulação predisposta pelo fornecedor que, do ponto de vista prático, inviabilize o acesso ao Poder Judiciário, por outro, a total desconsideração das regras tradicionais sobre competência contidas no Código de Processo Civil, se distancia, em algumas hipóteses, dos próprios princípios norteadores de toda a legislação protetiva, desde a sua previsão constitucional, conforme passaremos a examinar.


2. A Abusividade da Cláusula de Eleição de Foro

        A jurisprudência brasileira geralmente relaciona a nulidade da claúsula de eleição de foro aos contratos estabelecidos por adesão, ou seja, àqueles em que o fornecedor apresenta ao consumidor as estipulações contratuais já elaboradas, com privilégios de toda ordem, com expressa limitação ou renúncia dos direitos do aderente.

        Na realidade, a decretação de nulidade das cláusulas que impõem ao consumidor a eleição de um foro, que possa dificultar ou mesmo inviabilizar o seu acesso ao Poder Judiciário, direito fundamental contemplado na Carta Magna, deve ter como base, segundo a Profª. Cláudia Lima Marques [1] , o disposto no art. 51, IV, do CDC, em especial na sua norma interpretativa, o § 1.º, III, do CDC, que representa à obtenção de uma vantagem exagerada para o fornecedor que contratou justamente no domicílio do consumidor e que posteriormente pretende litigar, em outro local, geralmente na sede da empresa. A utilização deste novo fundamento legal, na visão da mencionada autora, possibilitaria ao juiz decretar a nulidade da cláusula de ofício, tendo em vista que as normas do CDC são de ordem de pública (art. 1º) e a nulidade prevista na enumeração exemplificativa do art. 51 é absoluta, o que afastaria o problema processual de se tratar de competência relativa, principalmente nas hipóteses em que o fornecedor é quem ingressa com a ação (Súmula 33 do STJ). [2]

        Esta abusividade verificada nos contratos de consumo, encontra-se atualmente, consolidada pela jurisprudência pátria. É do risco profissional do fornecedor que exerce suas atividades em determinada localidade, seja através de filial ou representante, manter um sistema de defesa judicial, se necessário. Assim, hoje não se admite que um consumidor que contratou no seu domicílio com determinada financeira tenha que ajuizar eventual ação judicial, no foro estabelecido no contrato, geralmente em algum Estado do centro do país, sede da empresa contratada.


3. Restrições quanto à aplicação irrestrita do art. 101, I do CDC

        A reflexão aqui proposta, no entanto, não se refere à situação anteriormente mencionada, resolvida com a decretação de nulidade da cláusula de foro de eleição pela jurisprudência.

        A questão ora debatida, detectada a partir da nossa atividade profissional, reside exatamente naquelas situações, onde o consumidor se desloca da sua localidade de origem (de seu domicílio) até a única sede do fornecedor para a procura de determinada prestação de serviços. Exemplo típico e de conhecimento geral, é o grande volume de pacientes, de todas as classes sociais, que se dirigem até a Capital do Estado em busca de tratamento médico-hospitalar. Seria nula igualmente qualquer cláusula contratual que estipulasse a renúncia do consumidor ao direito disposto no art. 101, I, CDC ? Ainda que se possa indagar, se o serviço procurado não possui similar no domicílio do paciente-consumidor, o fato é que, nestas situações, a aplicação literal do art. 101, I, do CDC, sem a possibilidade de eleição de foro por parte dos atores do mercado de consumo, pode representar um posterior desequilíbrio entre os futuros litigantes que o legislador pretendeu evitar.

        O inciso I do art. 101 do Código do Consumidor dispõe que a ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços pode ser proposta no domicílio do autor (consumidor). A primeira vista, através de uma interpretação meramente literal, poderia se concluir que o direito de escolha do consumidor é livre e inatingível para todas as situações dentro do mercado de consumo. Tal interpretação, contudo, segundo o nosso entendimento, merece algumas restrições.

        Inicialmente, cumpre considerar que as inovações trazidas pelo Código do Consumidor, tem como um dos principais reflexos a efetiva concretização do princípio da isonomia, não somente do ponto de vista formal, mas sobretudo do ponto de vista material. Todo o sistema jurídico de proteção ao consumidor, presumivelmente vulnerável (art. 4º, I, CDC), busca reequilibrar os pesos da balança. Contudo, não nos parece razoável que o fornecedor assuma o risco, em função da sua atividade, de manter um sistema de defesa judicial em todas as localidades de onde provém seus consumidores. Tomando como exemplo apenas o nosso Estado com praticamente 400 municípios, poderia se admitir, em razão da literalidade do art. 101, I, do CDC, que fossem ajuizadas ações em todas estas localidades. Tal situação, contudo, põe em xeque a própria prestação do serviço, especialmente, a relacionada à área da saúde. O Código de Defesa do Consumidor objetivou apenas suprimir a desigualdade verificada no mercado de consumo e não invertê-la.[3] 

        O art. 101, I, do CDC, deve ser entendido e aplicado, em consonância com os princípios orientadores da lei, em especial, o da boa-fé objetiva. Não se pode olvidar para solução da questão, a forma como se procedeu a contratação entre consumidor e fornecedor. Em relação ao agir de boa-fé, ensina o Prof. Luís Renato Ferreira da Silva[4] que um contratante não pode abusar de uma determinada situação fática que o coloque em superioridade manifesta em relação ao outro contratante. O ajuizamento de eventual demanda judicial no domicílio do próprio consumidor na situação ventilada, coloca-o em superioridade inquestionável, rompendo com o postulado da boa-fé. Assim sendo, a fim de evitar que estes consumidores, provenientes de outras localidades, e que buscaram a prestação de serviços diretamente na única sede do fornecedor, ingressem com eventual ação judicial no foro do seu domicílio ao abrigo do art. 101, I, do CDC, é que temos defendido em juízo a validade da cláusula de eleição de foro nestas situações, com base na redação do art. 111 do CPC[5], sem que se configure qualquer abusividade, nos moldes anteriormente delineados e consolidados pela jurisprudência.

        Isto porque, embora as normas do CDC sejam de ordem pública e de interesse social (art. 1º), e, por isso, indisponíveis, não há vedação legal com relação as partes convencionarem no contrato o foro eleito para dirimir eventual conflito na órbita judicial. Conforme acentua o Des. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento[6], " o fato de ser o direito de escolha uma faculdade concedida ao consumidor ("a ação pode ser proposta no domicílio do autor", art. 101, I, CDC) leva a se concluir da possibilidade das partes, no contrato relativo a relação de consumo, usarem do que permite o art. 111 da lei processual civil e disporem sobre o foro de eleição." Lembre-se, ainda, apenas como analogia, que em termos de legislação protetiva, nem mesmo a CLT, fixa como regra geral a competência das ações no domicílio do empregado e sim na do local da prestação do serviço (art. 651 da CLT).

        Nesta linha de raciocínio se encontra recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, publicada na Revista de Direito do Consumidor, vol. 10, pág. 258, cuja ementa resume:

"CONTRATO DE ADESÃO. Relação de consumo (art. 51, I da Lei 8.078/90 - "Código de Defesa do Consumidor") - Foro de eleição - Cláusula considerada não abusiva - Conclusão extraída da análise dos fatos (Enunciado 7 da Súmula/STJ) - Recurso Inacolhido."

         É preciso registrar apenas que para a validade da cláusula em comentário, é necessário que o contratante tenha condições de compreender os efeitos da referida estipulação contratual, principalmente, nos denominados contratos de adesão, em cumprimento ao disposto no art. 54, §4º, do CDC.

        Assim sendo, o art. 101, I, do CDC, deve ser aplicado na sua inteireza sempre que detectada a abusividade da cláusula de eleição de foro, verificada a partir da análise do local da aquisição do produto ou da utilização do serviço. Em verdade, o referido dispositivo deve ser aplicado em combinação com uma das hipóteses da listagem enumerativa do art. 51 do CDC e não isoladamente.

        Por fim, vale perquirir se a interpretação ora proposta também se estende às ações judiciais abrangidas pela competência dos Juizados Especiais Cíveis, disciplinados pela Lei nº 9.099/95. A resposta deve ser positiva, com a observância da regra contida no art. 4º, inciso I, da Lei nº 9.099/95, restando inaplicável o inciso III do art. 4º do referido diploma legal, conforme, aliás, já decidiu a 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis do Rio Grande do Sul, em recente julgamento, ementado da seguinte forma: “Mandado de Segurança. Contrato de prestação de serviço educacional. Responsabilidade contratual. Competência do lugar em que se situa a sede, filial ou sucursal do estabelecimento de ensino. Concederam a segurança.”
(1ª T. Recursal, nº 01599011994, Rel. Ergio Roque Menine, unânime).


4. Conclusão

        Sem qualquer pretensão de se esgotar o tema, objeto do presente estudo, procuramos demonstrar, através de um sucinto debate crítico, situações em que, a regra do art. 101, I, do CDC, encontra aplicação limitada ou mais restrita, sob pena de afronta aos preceitos de hierarquia constitucional. Na prática se apresentam situações insustentáveis e pouco razoáveis, e por esta razão, a merecer um tratamento jurídico diverso na forma proposta. Inobstante as decisões em sentido contrário, verificadas em um apanhado da jurisprudência, tais como a do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul publicada na Revista de Direito do Consumidor, vol. 09, pág. 139, quando restou decidido que aplicava-se o disposto no art. 101, I, do CDC, desconsiderando-se às tradicionais regras de competência do direito processual comum, entendemos que a solução aqui propugnada não representa descumprimento à lei e atende às expectativas e às necessidades do mercado de consumo.

        Deve-se buscar a harmonia e a adequação dos princípios constitucionais, da isonomia e da igualdade dos litigantes, ao verdadeiro sentido do Código do Consumidor. A aplicação desmedida e irrestrita das normas do CDC a todas as situações, sem uma interpretação sistemática, pode acarretar o próprio enfraquecimento da legislação de tutela aos consumidores, além de inviabilizar determinadas atividades, que embora sejam desenvolvidas em uma única localidade (somente em determinado município) possuem abrangência regional, exigindo o ajuizamento da ação no foro do domicílio do réu, em cumprimento à regra geral sobre competência (art. 94 CPC). Neste sentido, pode-se destacar dois pronunciamentos do Poder Judiciário gaúcho que sintetizam o presente estudo. O primeiro deles, proferido nos autos da Exceção de Incompetência nº 10029, na Comarca de Canela/RS, de onde se destaca o seguinte trecho: "Ao demandar os réus nesta comarca, o excepto malferiu o disposto no art. 94 do Cod. de Proc. Civil. Tratando-se de ação fundada em direito pessoal, a norma de competência obriga o ajuizamento, em regra, no foro do domicílio do réu. A "actio" tem por escopo a reparação de danos morais e pagamento de pensão por alegados erros médicos. Não incide nenhuma norma de exceção que altere a competência." (o grifo é nosso). O segundo, extraído do julgamento do Agravo de Instrumento nº 596228601, exarado pela 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatado pelo Des. Décio Antônio Erpen, com a seguinte ementa:

“EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA – Para efeitos de estabelecimento do foro não se considera uma Universidade de âmbito estadual como fornecedora de serviço cogitado pelo CDC. Há que prevalecer a regra geral de que o réu dever ser demandado no foro de seu domicílio. Agravo Provido.”


        O Código do Consumidor foi concebido para regular as modernas relações do mercado de consumo, a fim de evitar discrepâncias e práticas abusivas a que eram expostos os consumidores. Todavia, não se pode estender ou alargar o seu alcance em detrimento de outros princípios constitucionais que orientam e gravitam no sistema jurídico pátrio. Não se configura em prática abusiva, a exigência do ajuizamento das demandas no foro do domicílio do réu, segundo as regras gerais sobre competência estabelecidas no Código de Processo Civil nas hipóteses mencionadas. Tampouco, deve ser cogitada a aplicação do art. 101, I, do CDC, quando a prestação do serviço ou a sua utilização ocorrer somente na única sede do fornecedor, prevalecendo às tradicionais regras que disciplinam a competência territorial do foro, inclusive com a possibilidade de inclusão da denominada cláusula de eleição.



[1] Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, 3ª Edição, pág. 498.

[2] Súmula 33 do Superior Tribunal de Justiça: "A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício."

[3] Neste sentido, Adroaldo Furtado Fabrício, in Revista de Direito do Consumidor, Vol. 07/32.

[4] Luís Renato Ferreira da Silva, Do Código Civil ao Código do Consumidor, Editora Forense, pág. 54.

[5] Art. 111 do CPC: "A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações."

[6] Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, Responsabilidade Civil no Código do Consumidor, Editora Aide, pág. 146, 1ª Edição.



nichelerafa@hotmail.com
Advogado do Hospital São Lucas da PUC/RS
Especialista em Direito Empresarial pela PUCRS
Incluído em 09/10/2001 03:01:24 - Alterado em 20/06/2022 21:30:29






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