O Direito de Saber a Verdade


Tratamento arbitrário

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Tratamento arbitrário    


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Genival Veloso de França

A consciência atual, quando sente ameaçada a mais indeclinável de suas normas – o respeito pela vida humana, dadas as condições mais excepcionais e precárias -, tenta de forma desesperada regras que impeçam a prática crueldades inúteis.


Código Penal:

Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando é possível fazê-lo sem risco pessoal, a criança abandonada ou extraviada, ou a pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o auxílio da autoridade pública: Pena – detenção de um a sus meses, ou multa de trezentos cruzeiros a dois mil cruzeiros.
Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda. Pena – detenção de três meses a um ano ou multa de quinhentos cruzeiros a cinco mil cruzeiros (...).
Parágrafo 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I – A intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. (...)

Código de Ética Médica:

É vedado ao médico:

Art. 46 – Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida.

Art. 51 - Alimentar compulsoriamente qualquer pessoa em greve de fome que for considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito  das possíveis conseqüências de sua atitude. Em tais casos, deve o médico fazê-la ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida, tratá-la.

Art. 57 – Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico tratamento a seu alcance em favor do paciente.



Introdução

                A consciência atual, quando sente ameaçada a mais indeclinável de suas normas – o respeito pela vida humana, dadas as condições mais excepcionais e precárias -, tenta de forma desesperada regras que impeçam a prática crueldades inúteis. Até mesmo nos momentos mais graves, quando tudo parece perdido como nos conflitos internacionais, na hora em que o direito da força se instala, negando o próprio direito, ainda assim o  bem da vida é de tal grandeza que a intuição humana se rende para protege-la da insânia coletiva.

                Ipso facto, na proteção do mais irrecusável de todos os direitos – o direito à vida, nossa legislação penal despenalizou o constrangimento ilegal, desde que a vida de uma pessoa corra perigo iminente de morte, e que alguém faça isso por meios moderados e sem colocar em risco a sua própria segurança.

                Mesmo sendo a liberdade um bem juridicamente protegido, não pode ela ser tolerada de forma irresponsável e contra o interesse comum. Quando essa liberdade é inconseqüente porque passa a conflitar-se com a liberdade das outras pessoas ou com as exigências de uma ordem pública e de um bem social, aí começam algumas de suas restrições. A liberdade existe para fazer do indivíduo um ser harmônico. Fora dessas considerações torna-se ela um abuso.

                O que o Estado protege não é a liberdade natural de o homem fazer ou deixar de fazer o que não quer, mas a liberdade social, a qual assegura a qualquer um de nós o exercício da própria vontade, dentro de um limite permitido pela norma regulamentadora. Em suma, o que se tutela é a liberdade responsável.

                Deste modo, a legislação brasileira exclui em duas situações a antijuridicidade do constrangimento ilegal: no tratamento médico arbitrário diante do iminente perigo de vida e no impedimento ao suicídio.

                Uma enfermidade, mesmo grave, mas sem perigo imediato ou risco remoto de morte não justificam tal intervenção médica. O elemento que caracteriza a exclusão da sanção penal é o estado de necessidade de terceiro, que a doutrina  moderna aceitou, dirimindo dúvidas e afastando as controvérsias. Sacrifica-se um bem - a liberdade, para salvar um outro, de maior interesse e significação que é a vida, da qual ninguém pode dispor  incondicionalmente, pois a reclama outro titular de direito – a sociedade, para  a qual o indivíduo não é apenas uma unidade demográfica, mas sobretudo um imensurável valor social e político.

                É imperativo que o médico entenda que nos casos de não emergência, deve ele ter o consentimento expresso ou tácito do seu paciente ou familiares, pois aí está prevalecendo apenas interesse de ordem pessoal. Assim, para o tratamento compulsório é preciso não apenas a existência de perigo de vida, mas também que essa intervenção seja urgente, necessária e inadiável, numa iminência de morte, para justificar tal conduta.

                Por outro lado, se atentarmos bem para a expressão “arbitrário”, vamos sentir que ela é imprópria pois o médico não faz outra coisa senão o que sua ciência permite, como condição obrigatória, e o que sua consciência determina pelo conteúdo histórico de sua profissão. A arbitrariedade não estaria no tratamento, mas na forma de contorná-lo face a recusa do paciente. Tratamento arbitrário, sensu stricto, seria realizar uma conduta terapêutica de caráter experimental em alguém contra sua vontade, quando o tratamento convencional o curaria.

                Deve-se entender como perigo de vida a situação em que existe uma possibilidade concreta de êxito letal e que exige uma atuação rápida, decisiva e inadiável, a fim de evitar a morte. A emergência e a urgência médicas são situações de fácil entendimento para o profissional da medicina, não sendo necessário muito apuro e muitos recursos para delimitá-las plenamente.

                Fora destas considerações há um assunto muito delicado para se tratar quando se fala no assunto em tela – o do internamento e tratamento psiquiátrico involuntários, notadamente quando eles ocorrem sem o consentimento do paciente ou de seus responsáveis legais. Mesmo que se fale de uma cura improvável, de uma suposta periculosidade e de uma falta de discernimento do paciente, ainda assim, sob o ponto de vista moral, não se pode dizer que este  paciente perdeu de todo sua autonomia e seus direitos de cidadania. Sendo assim, a utilização da “força bruta”, de substâncias químicas ou de qualquer outro meio para diminuir a resistência ao tratamento indesejado, sãos procedimentos no mínimo ultrajantes e ofensivos.

                Só se pode admitir esta forma de tratamento e de internamento quando se caracterizar um perigo real para o paciente ou para outrem. E mais: no momento em que o paciente sai deste estado, deve ser imediatamente considerado um paciente voluntário, e a sua autonomia deve ser reintegrada e respeitada.

                Nas outras formas de atendimento médico, quando o profissional estiver diante de um caso de recusa de condutas terapêuticas ou práticas diagnósticas, o ideal será um acordo eticamente defensável entre ele, o paciente e/ou a família até se chegar a uma solução em que o assistido seja favorecido. O mais difícil nesta questão é quando o paciente ou seus responsáveis não aceitam ou não admitem continuar com o tratamento ou fazer os exames necessários, por considerá-los fúteis ou imprestáveis, diante de alguns estados considerados incuráveis. Em tais ocorrências, o médico deve esgotar todos os meios para conquistar a adesão deles, só podendo intervir quando a lei e o seu código permitirem: diante do iminente perigo de vida (princípio da beneficência).

O caso das Testemunhas de Jeová

                O que fazer se um seguidor de determinada religião, como o Testemunho de Jeová, recusar uma transfusão de sangue, quando este é o único recurso para salvar-lhe a vida? Deve o médico atender tal recusa ou está obrigado a fazê-la?

                Há uma corrente que afirma ser a liberdade o primeiro direito na hierarquia dos direitos fundamentais do indivíduo e chega mesmo a enfatizar que entre o direito à vida e o direito à liberdade, a escolha é do titular desse privilégio, atendendo-se ao princípio da autonomia. Desta forma, teria o paciente o direito de aceitar ou não um tratamento por imperativo religioso, mesmo que ele fosse o único meio de salvar-lhe a vida, pois isto estaria constitucionalmente consagrado em nossa Carta Magna (incisos VI e X do artigo 5º), em respeito á liberdade de consciência e de crença.        

                Afirma-se ainda que o dever do médico é de fonte legal e o direito do paciente de aceitar ou recusar um tratamento é “expressão de sua liberdade”, segundo a Constituição brasileira em vigor. O médico cumpriria suas obrigações apenas informando ao paciente ou ao seu responsável legal da necessidade ou da conveniência de uma conduta ou de um tratamento e de suas conseqüências advindas pela não aceitação, mesmo que seu Código de Ética se expresse claramente dizendo que “é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida”.

                Insiste-se dizendo que a interpretação literal deste dispositivo do Código de Ética Médica é absurda, pois pelo fato de o paciente estar diante de um perigo de vida ele não perdeu o direito fundamental à liberdade, seja no aspecto religioso, seja no aspecto de sua privacidade.

                Há ainda a afirmação de que no atendimento médico à recusa do paciente não existe crime porque isto se deu por manifestação tácita ou expressa do assistido ou de seus responsáveis legais. Houve, apenas, segundo aqueles defensores desta idéia, uma recusa de tratamento por parte do paciente.

                Mesmo no caso de crianças, reconhecem que os pais ou representantes gozam do direito de aceitarem ou não determinada forma de assistência médica destinada a elas. E quando o menor for capaz de demonstrar maturidade para decidir, afirmam, pode também recusar o tratamento.

                Todavia, entendemos que os médicos neste particular enfrentam um grande desafio quando têm de salvar uma vida em iminente perigo de morte e de respeitar um sentimento religioso. Deve o médico entender, no caso das Testemunhos de Jeová, que em muitas ocasiões  o sangue pode ser substituído por outros fluidos ou não ser usado e, por isso, poderá desenvolver uma forma de tratamento que não sacrifique a vida nem comprometa seus princípios religiosos. Não esquecer também que esses adeptos não abriram mão da vida e não desacreditam na medicina, mas apenas face sua convicção religiosa solicitam abster-se de sangue.

                Infelizmente nem sempre é possível tal conciliação. Como se viu antes, nossa legislação penal substantiva em vigor admite como crime deixar de prestar assistência à pessoas em grave e iminente perigo de morte (artigo 135) e exclui da categoria de delito a intervenção médica ou cirúrgica, mesmo sem consentimento do paciente ou de seu responsável legal, se justificada por iminente perigo der vida (artigo 146). Neste caso, o médico deve agir porque está amparado no exercício regular de seus direitos e no cumprimento do dever legal. Assim determina a Resolução CFM nº 1.021, de 26 de setembro de 1980.

O caso dos grevistas de fome

                A greve de fome tem sido um recurso muito utilizado, de forma individual ou coletiva, como forma de protesto contra o sistema prisional ou como manifestação à determinadas propostas políticas e ideológicas. Esta modalidade de oposição além dos problemas médicos, administrativos e legais, implica também em alguns dilemas éticos, ainda mais porque esses casos surgem em  momentos muito delicados.

                Caracteriza-se a greve de fome pela recusa de uma pessoa, livre e conscientemente, a alimentar-se, no propósito deliberado de protestar contra uma situação ou uma atitude, considerada injusta, agindo assim para chamar a atenção e provocar um clamor público em favor de suas idéias.

                A Declaração de Tóquio, adotada pela 29ª Assembléia Geral da Associação Médica Mundial, em outubro de 1975, no Japão, assim se expressa: Quando um prisioneiro recusar alimento mas for considerado capaz de elaborar um raciocínio correto e racional relativo à conseqüências de tal recusa voluntária ao alimento, ele não será alimentado artificialmente. A decisão quanto à capacidade do prisioneiro de formar tal raciocínio deverá ser confirmada por, pelo menos, um outro médico independente. As conseqüências da recusa do alimento serão explicadas pelos médicos ao prisioneiro”.

                Assim, a primeira coisa que o médico deve fazer é informar ao grevista de fome os possíveis riscos e as possíveis seqüelas irreversíveis do jejum prolongado. Outra coisa que se aconselha é deixar a sua disposição água simples ou açucarada, porções de sal e vitaminas, fazendo ver a ele que isso não descaracteriza seu protesto nem desqualifica a greve de fome. É condenável, sob todos os aspectos, privar o grevista de fome desses elementos mais imprescindíveis como forma de vence-lo pelo suplício da sede, por exemplo. Não se pode abandoná-lo pura e simplesmente pelo fato dele ser um prisioneiro ou militante de determinada causa e de ter optado por tal atitude.

                O ideal será o médico não demonstrar que está o tratando, nem que ali se encontra por determinação da administração prisional. Deve tratar o grevista de fome com respeito e compreensão, entendendo que está diante de uma situação delicada e de um ser humano que, de forma consciente e voluntária, luta por seus objetivos e que acredita no êxito de seu gesto, embora sabedor do risco  de um desfecho fatal, mas sem que isso seja a finalidade do seu protesto.

                No entanto, a partir do instante em que o grevista de fome chega ao limite crítico do perigo de morte, daí em diante ele não é mais o homem que protesta mas o paciente que necessita de cuidados par salvar a vida, mesmo contra a vontade dele. Se o paciente está inconsciente, maior a razão da intervenção, pois talvez essa fosse sua vontade, se pudesse manifestá-la. O ato de alimentar ou tratar um prisioneiro em greve de fome, e em extremo perigo de vida, somente pode ser realizado por decisão, vigilância e orientação do médico, embora caiba a administração carcerária colocar à disposição do preso todas as formas possíveis de assistência.

                Cabe também lembrar que o grevista de fome não é um doente mental, nem seu gesto tem algo a ver com suicídio. A inanição voluntária, como forma de luta e de protesto, pode ser considerada uma maneira consciente  de luta e uma postura altiva capazes de permitir tempo e diálogo com as partes em litígio.

                O grevista de fome quer viver e viver melhor. Ele age de maneira consciente, livre e programada, acreditando no êxito de sua desesperada atitude.

                É muito difícil agir nestes  momentos, notadamente quando uma causa justa se choca com uma mentalidade ou uma conduta insensível e arbitrária. Ainda assim, a obrigação de alimentar e tratar alguém em iminente perigo de vida é não só um imperativo ético, mas a essência da própria profissão médica, como instrumento inescusável em favor da vida. Se o médico não o tratar, dentro dessas considerações, responde ética e penalmente por omissão de soc0rro. Assim recomenda a Declaração de Malta, adotada pela 43ª Assembléia Geral da Associação Médica Mundial, em setembro de 1992, sobre “pessoas em greve de fome” .

Conclusões

                Diante do exposto, fica evidente que a legitimidade de uma intervenção médica ou cirúrgica, qualquer que seja sua especialidade, está perfeitamente justificada quando a indicação é precisa e quando há permissão do paciente ou de seus responsáveis legais por um consentimento esclarecido.

                No entanto, quando o ato médico é processado no interesse irrecusável de resguardar alguém de um perigo certo e iminente, e quando precisa e perfeitamente indicado, o medico estaria autorizado a agir e jamais tal atitude poderia ser passível de punição.

                Há ocasiões, tão graves e tão delicados, onde quem vai legitimar o ato médico não é o consentimento livre e consciente do paciente ou de seus familiares, mas a sua indiscutível, inadiável e imperiosa necessidade.

                Tais questões, embora raras, têm suscitado prolongados e acirrados debates doutrinários, mas que estão hoje plenamente justificadas pela nossa legislação penal e pelo nosso Código de Ética Médica. Recomenda-se apenas a delicadeza e a prudência de atitudes diante destas situações tão pungentes, mas também a firme e decisiva disposição de salvar uma vida.
                
Bibliografia

1.        França, GV – Comentários ao Código de Ética Médica, 3ª edição, Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan SW/A, 2000.
2.        França, GV – O direito arbitrário de tratar, JAMB, ano XIV, nº 612, São Paulo, 1972.
3.        Galán Cortés, JC – Aspectos legales de la relación clínica, Madrid: Jarpyo Editores S/a, 2000.
4.        Hivert, PE e Brion, IF – Grève de la faim em prison. Rèv. Penitentiaire de Droit Penal, vol.4, nº 94, 1970.
5.        Ley, A – Lê refus der manger dit grève de faim chez les prisionners. Ver. Pénitentiaire de Droit Penal Crim., vol. 34, nº 5, 1953/4.
6.        Ribeiro, L – Direito de curar, Rio de Janeiro: Tese, 1932.

Incluído em 09/11/2001 23:10:51 - Alterado em 18/06/2022 22:56:56





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