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Acredito
que, em nenhum momento da existência humana, jamais houve um inimigo biológico mais
poderoso, capaz de trazer tantos desafios e de confundir tanto a opinião pública como a
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Certamente, ainda vamos permanecer
atônitos e perplexos por muito tempo, mesmo depois da descoberta do seu tratamento,
porque inúmeras são as implicações dessa nova ordem no contexto das relações
sociais. Nenhuma doença trouxe, no seu conjunto, tanta perplexidade e inquietação
quanto a AIDS, seja no seu aspecto epidêmico, moral ou imunológico, seja no seu caráter
incurável e letal. Pelo menos, é assim que ela é vista por muitos. E o pior: toda vez
que discriminamos as vitimas, fortalecemos mais e mais a doença. 1. Chauí M. Repressão sexual - Essa nossa desconhecida.São Paulo:
Brasiliense,1985. 2. Foucault M. História da sexualidade. A vontade de saber. vol. I, Rio de
Janeiro: Graal, 1984. 3.França, GV. Comentários ao Código de Ética Médica, 3ª edição, Rio: Editora
Guanabara Koogan S/A, 2000. 4. França GV. Direito Médico. 6ª edição, São Paulo: Fundo Editorial Byk,
1995. 5. Levi G. Síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). Revista da
Associação Médica Brasileira, vol. 31, n°. 9/10, 1985. 6. Sontag S. A doença como metáfora.Rio de Janeiro: Graal, 1984. Índice
Artigos
AIDS - Um enfoque ético-político
Acredito que, em nenhum momento da existência humana, jamais houve um inimigo biológico mais
poderoso, capaz de trazer tantos desafios e de confundir tanto a opinião pública como a
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS).
Introdução
A
esterilização dos HIV – positivos
O
aborto da mulher infectada pelo HIV
A
gestante HIV-positiva
A
infecção pelo HIV e o recém-nascido
O
sigilo como instrumento social
A
inconveniência dos testes pré-admissionais
O
problema do menor infectado em estabelecimentos correcionais
A
postura do médico infectado
A
postura do médico ante os doentes e infectados pelo HIV
A
infecção pelo HIV e o paciente que vai morrer
As
deficiências da legislação brasileira
Conclusão
Referências
Bibliográficas
No entanto, a partir do
instante de uma reflexão mais atenta, começamos a enxergar uma multidão de fatos que
alucina e dá à AIDS um rótulo maldito e fatal. Mas, tão contraditório, a ponto de
não existir ainda uma resposta imediata para justificar o seu aparecimento, se ela é ou
não uma doença atual e qual a razão de sua trágica rapidez. Seria ela uma nova doença
tão ao gosto das mentes especulativas ou apenas a reorganização sistemática de uma
propedêutica sobre o que já existia?
Mesmo que a intuição
científica leve a crer que estamos marchando para a cura da AIDS, muitas verdades
médicas ainda não foram decodificadas e o preconceito continua a crescer como uma
avalanche arrasadora. O perigo de tal avanço é que essa doença saia do corpo dos
pacientes e permaneça na imaginação de todos, estigmatizada pela discriminação odiosa
e fantasiada pelo modismo que contamina os doentes, a sociedade e os próprios médicos. O
risco, portanto, é se transformar a AIDS numa ficção, ou criar-se uma ideologia
política autoritária capaz de promover o medo como controle social mais rigoroso.
Quando se disse, no início,
que ela seria uma entidade dos homossexuais, era de fato dos homossexuais porque apenas
neles se procurou a doença. Depois, afirmou-se que podia ser ainda dos consumidores de
drogas injetáveis e passou a ser igualmente deles. Agora, é também dos heterossexuais,
e a sua incidência, segundo essa visão, é cada vez maior. Já se acredita que, sendo a
AIDS uma virose clássica e tendo como via principal de contágio o ato sexual, e
admitindo-se como verdadeiro que as pessoas são, em sua maioria, heterossexuais, no
futuro, não muito distante, a prevalência dos pacientes e infectados, seria de
heterossexuais.
O fato é que hoje, em toda
parte, os portadores de AIDS enfrentam uma situação constrangedora. Sofrem o horror de
uma doença que os estigmatiza no convívio social e os avilta na luta pelos meios de
sobrevivência. São doentes marginais do desprezo e do abandono, mesmo dos que lhes são
próximos. Negam-lhes tudo: o afeto, a estima, a solidariedade e, até, o direito de
morrer com dignidade.
Vejamos algumas situações:
A esterilização dos HIV
– positivos
Qualquer que seja o andamento
da discussão que favorece a esterilização humana, como forma de inserção numa
política de planejamento demográfico, não existe nenhuma justificativa de ordem ética
ou legal, capaz de legitimar essa prática em pessoas portadoras de sorologia positiva
para o vírus da imunodeficiência humana (HIV), porque qualquer forma de insinuação
eugênica traz sempre o ranço do constrangimento e as marcas da repugnância.
Mais grave do que esterilizar
um homem ou uma mulher, hígido e capaz, é invadir a intimidade de um ser humano,
aviltando-o na sua dignidade e mutilando-o nas suas funções, unicamente com o sentido de
privar a sociedade da responsabilidade, da vigilância e dos cuidados, pelo fato de ser
portador - mais de um estigma do que de uma doença, deixando bem claro o indisfarçado
preconceito contra esses indivíduos, expostos quase sempre às crueldades de uma
sociedade hipócrita e egoísta.
O aborto da mulher infectada
pelo HIV
Ainda que exista o risco da
contaminação ou de doença do feto, não se permite legalmente nem se considera
eticamente defensável a prática do abortamento da mulher infectada pelo HIV. O Código
de Ética Médica em vigor, em consonância com a legislação penal brasileira, só
admite o aborto em duas situações: para salvar a vida da gestante ou nos casos de
gravidez resultante de estupro.
Pelo fato de se tratar de uma
matéria sem resposta definitiva, no que diz respeito à influência da sorologia positiva
no processo gestacional e da própria saúde do feto, minha opinião é que não existe
nenhum argumento ético, jurídico ou técnico, capaz de fundamentar a interrupção de
uma gravidez numa portadora de HIV-positiva ou mesmo de uma doença de AIDS, a não ser
que suas condições de saúde sejam agravadas pela gestação, que cessada a gravidez
cesse o perigo e que não haja outro meio de salvar-lhe a vida.
A gestante HIV-positiva
Ainda que exista uma
possibilidade de morte precoce, de sofrimento oriundo da doença, de riscos de
contaminação do feto e de informações desestimuladoras, esses fatos nem sempre têm
desanimado as mulheres HIV-positivas na sua decisão de engravidar. Não se sabe ainda,
por exemplo, a época exata da contaminação - se durante a vida intra-uterina ou se no
momento do parto, mas, uma coisa é certa: a gravidez, nesta hipótese, não melhora nem
piora as condições imunológicas das gestantes.
Assim, seja qual for a
entendimento que se tenha a respeito da transmissão, das formas de infecção e do
mecanismo de contágio, o médico não pode impedir essa mulher de engravidar e ter seu
filho, se esse é o seu desejo. Mas, tão-somente, oferecer-lhe todos os meios e recursos
necessários e disponíveis para uma gestação nestas condições. Nenhum médico e
nenhuma instituição de saúde pode negar-lhe assistência, pois isso é um ditame ético
exigido a todos aqueles que professam a medicina, mesmo que possam ter um entendimento
diverso sobre a questão, no seu plano conceitual e doutrinário.
Qualquer que seja a posição
no sentido de que todas as gestantes façam ou não o teste sorológico, ou apenas aquelas
de comportamento de risco, dois fatos são imperativos: primeiro, que o teste seja
voluntário e que diante de sua negativa seja assegurado o acompanhamento do pré-natal e
do parto; segundo, que seja garantido o sigilo do resultado.
A infecção pelo HIV e o
recém-nascido
Ninguém discute aqui o
valor e a procedência do diagnóstico precoce da infecção, permitindo à mulher
utilizar-se de processos contraceptivos capazes de evitar a gravidez em tal estado, ou
como forma de orientação de cuidados pré e pós-natais, no sentido de reduzir ao
máximo risco da contaminação do feto ou do recém-nascido, além dos procedimentos
necessários ao infante eventualmente infectado. Aqui também o exame deve ser
facultativo, embora se deva registrar em prontuário a recusa da mãe gestante,
principalmente se é ela do grupo chamado de procedimento de risco. O sigilo, quanto ao
resultado, torna-se da mesma maneira obrigatório.
O sigilo como instrumento
social
É imperioso lembrar que o
segredo médico é um direito do paciente, como forma definitiva de conquista da cidadania
e somente a ele cabe abrir mão desse privilégio. A não ser nas duas outras situações
que o Código de Ética Médica desobriga: por justa causa ou por dever legal.
O paciente infectado pelo HIV não foge a essa regra.
Se o paciente, neste
particular, manifesta o desejo de que seus familiares não tenham conhecimento de suas
condições, ainda assim deve o médico respeitar tal decisão, persistindo essa
proibição de quebra de sigilo mesmo após a sua morte. No entanto, é providencial que
se exija do portador do HIV-positivo a designação de uma pessoa de sua inteira
confiança para servir de intermediário entre ele e quem o assiste, e que o paciente
colabore no sentido de cientificar aos seus parceiros sexuais ou membros de grupo de uso
de drogas pesadas, no intuito de evitar a propagação do mal. Por outro lado, é
obrigatória a notificação de todos os casos suspeitos ou com diagnóstico confirmado de
AIDS. Não deve haver notificação dos casos de pessoas simplesmente infectadas pelo HIV.
Desse modo, só será permitida
a quebra do sigilo profissional quando houver expressa autorização do paciente ou de
seus responsáveis legais; por dever legal, nos caos de notificação compulsória à
autoridade sanitária ou em preenchimento de atestado de óbito de portadores de AIDS; ou,
por justa causa, nas situações de proteção da vida e da saúde de terceiros –
quando membro de grupos de uso de drogas injetáveis ou comunicante sexual, ou o próprio
paciente, recusar-se lhes fornecer informações quanto a sua condição de infectado.
Se os portadores de HIV
confiarem na preservação do sigilo das informações prestadas às equipes
multiprofissionais que cuidam desses casos, e que somente na condição de doentes de AIDS
haveria comunicação aos setores sanitários responsáveis, além da certeza do respeito
a sua privacidade, estaria resolvida, em parte, a questão dos exames periódicos
voluntários, contribuindo de forma significativa para o controle e a avaliação do
quadro epidemiológico.
A inconveniência dos testes
pré-admissionais
Uma das formas de preconceito
mais evidente, na relação com possíveis portadores do HIV, é a solicitação de exames
pré-admissionais que se vem impondo como condição de ingresso no trabalho, na escola e,
até mesmo, no internamento hospitalar, na expectativa de surpreender indivíduos
sorologicamente positivos.
Entendo que não existe
qualquer justificativa técnica ou científica para tais exames. Quem necessita saber
sobre esses resultados são os próprios indivíduos e as autoridades sanitárias que
organizam suas campanhas e medem a extensão do problema. Agindo-se de tal maneira contra
os soropositivos além dos despropósitos ético e científico, o critério é humilhante
e contrário aos interesses sociais, pois desagrega o indivíduo, empurrando-o para a
marginalidade sem as possibilidades de trabalho, sem a assistência médica e sem as
condições financeiras que favoreçam sua sobrevivência.
No que se refere à posição
dos médicos de empresas ou de juntas oficiais, todas as informações obtidas sobre esse
assunto, devem ser transmitidas apenas ao paciente. Qualquer informação sobre o
empregado ao empregador, limitar-se á à aptidão ou à não aptidão do trabalhador, e
se temporária ou permanente para o desempenho de determinadas funções. A realização
de testes sorológicos por imposição do empregador não encontra amparo técnico,
científico ou moral, sendo esse assunto do interesse da autoridade sanitária. Até mesmo
o poder público reconheceu seu equívoco, ao decidir, na Portaria Interministerial nº
869, de 11 de agosto de 1992, dos Ministérios da Saúde e do Trabalho e da
Administração, "proibir, no âmbito do serviço público, a exigência de testes de
detecção de vírus da imunodeficiência adquirida, tanto nos testes pré-admissionais
quanto nos exames periódicos de saúde", considerando que a sorologia positiva não
acarreta prejuízo da capacidade laborativa do seu portador, que os convívios social e
profissional com portadores do vírus não configuram situações de risco, que a
solidariedade e o combate à discriminação são fórmulas que a sociedade dispõe para
minorar o problema e que essas situações devem ser conduzidas segundo os preceitos da
ética e do sigilo.
O Conselho Federal de Medicina
determinou, através da Resolução CFM nº 1.359/92, que é vedada a realização
compulsória da sorologia para HIV, em especial como condição necessária à
internação hospitalar, pré-operatório, ou exames pré-admissionais ou periódicos e,
ainda, em estabelecimentos prisionais.
Por fim, é bom que se enfatize
ser a identificação de pacientes HIV-positivos em internamento hospitalar, uma
estratégia sem muita sustentação moral e nenhuma argumentação técnica, pois, na
urgência, onde os aludidos riscos seriam mais evidentes, não haveria tempo para esperar
o resultado sorológico. Haveria ainda o risco dos pacientes com viremia e sorologicamente
negativos, e os casos dos que se negassem a tais exames. Os pacientes, por sua vez,
notadamente os submetidos a procedimentos invasivos, teriam também o direito de exigir,
com muito mais razão, o teste dos médicos. O que se deve exigir urgentemente é um
nível sério de cuidados, na proteção de todos os profissionais de saúde, com enfoque
para aqueles casos onde a contaminação sangüínea seja possível. No entanto, se alguma
instituição quiser exigir a triagem sorológica dos pacientes não emergências, para
que esse modelo venha ser eticamente discutível, é necessário que o exame seja
voluntário e informado, que o paciente ao não aceitar o teste possa ser tratado sem
nenhuma restrição, e que o paciente positivo tenha garantia do sigilo em relação ao
resultado do exame e não sofra qualquer prejuízo na qualidade da assistência requerida.
O problema do menor
infectado em estabelecimentos correcionais
Das tantas complexidades do
problema, certamente, a mais complexa é a do posicionamento a ser adotado pela equipe
médica, em face da solicitação de autoridade judicial ou administrativa, sobre o
fornecimento de dados relativos a menores infratores e detentos do sistema correcional,
portadores de sorologia positiva para o HIV.
Em primeiro lugar, o médico
não deve revelar às autoridades administrativas dos sistemas correcionais a identidade
dos menores infratores com sorologia positiva. Não estaria justificada a quebra do sigilo
pela suposta necessidade de adoção de medidas profiláticas, pois de nada adiantaria tal
identificação, quando se sabe não existir nenhum procedimento que possa trazer
benefícios ou que respeite à dignidade do menor, aumentando, isso sim, os riscos de
segregação e de hostilidade. O que se deve fazer urgentemente, é melhorar as
condições do atendimento nessas instituições, hoje tão precárias e desumanas.
Depois, acho conveniente revelar o fato aos pais ou aos seus responsáveis legais - no
caso em tela, o juiz - por entender que aquele menor não tem a capacidade de avaliar seu
problema e de conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-los, como recomenda o
artigo 103 do Código de Ética Médica.
E, por fim, acredito ser
necessária a revelação do segredo à equipe multidisciplinar, que trata também do
menor, por considerar que a solução do problema não é da exclusiva competência
médica, mas de tantos outros profissionais, os quais, também, sujeitos à
obrigatoriedade do sigilo.
A postura do médico
infectado
O médico infectado, como todos
os pacientes, tem o direito à privacidade, ao sigilo e ao respeito que toda pessoa
merece, não se podendo privar dele suas atividades no convívio social e do trabalho,
respeitadas, é claro, as condições que seu estado de saúde permite e o tipo de
atividade exercida.
Por outro lado, não se pode
aceitar as recomendações do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC), a
partir de possibilidades remotas de transmissão do HIV, quando trata dos profissionais de
saúde infectados. Em primeiro lugar, não há razões de ordem técnica ou moral para a
realização sistemática e compulsória de sorologia anti-HIV em profissionais mais
expostos, pois o risco de contaminação em alguns casos é quase nulo. Discute-se se
existe ou não a necessidade da comunicação aos pacientes sobre a condição sorológica
dos médicos infectados, que possam se envolver nos chamados procedimentos invasivos (atos
sujeitos a risco de contaminação por perfuração acidental percutânea do profissional,
através de contato do seu sangue com tecidos do paciente). Pessoalmente, entendo que sim:
o médico deve dizer ao paciente que é portador do HIV-positivo.
Também não se vê a
necessidade do impedimento de profissionais infectados de trabalharem normalmente em
tarefas compatíveis com as suas condições de saúde e em determinadas modalidades de
trabalho sem risco de contaminação. No entanto, recomenda-se que o médico portador da
sorologia positiva para HIV, sponte sua, evite ou tome determinados cuidados
com certos atos, principalmente nos procedimentos invasivos ou na manipulação de
instrumental cortante ou perfurante capaz de passar sangue acidentalmente para o paciente,
mesmo tendo em conta a probabilidade mínima de contaminação nesses casos. Não se
considera errado o fato da direção do corpo clínico discutir, caso a caso, a
participação de cada profissional reconhecido como infectado, a partir do momento em que
se evidencia atitudes mais imprudentes por parte do médico em questão, pois deixar o
problema sem nenhum controle também seria uma conduta irresponsável.
Em suma, o médico infectado
pelo HIV, como qualquer outra pessoa, deverá ter sua privacidade respeitada, não
existindo a necessidade dele informar sobre sua situação. Todavia, havendo acidentes em
procedimentos invasivos, o médico que conhece seu estado sorológico está obrigado
eticamente a levar o fato ao conhecimento das equipes de suporte e orientação, como,
também, é dever moral dessas equipes ou do próprio médico, informarem o paciente sobre
o possível risco e orientá-lo para os exames de praxe. Sendo o médico não-infectado e
o paciente reconhecido como portador de sorologia positiva, havendo acidente em
procedimento invasivo ou acidente com instrumental cortante ou pontiagudo, o médico tem
de procurar aquelas equipes de orientação e submeter-se ao exame sorológico
necessário.
A postura do médico ante os
doentes e infectados pelo HIV
Nenhum médico pode recusar o
atendimento profissional a pacientes portadores do vírus da imunodeficiência humana,
pois essa assistência representa um imperativo moral da profissão médica. Assim se
reporta em tom dogmático a Resolução CFM n° 1.359, de 11 de novembro de 1992.
Levando em conta que a medicina
é uma profissão voltada para a saúde do ser humano e da coletividade e deve ser
exercida sem nenhuma forma de discriminação; que a AIDS continua avançando e mudando
seu perfil epidemiológico quando agride os diferentes grupos populacionais; e que o
impacto da doença é medonho e limita o paciente, vulnerando-o física, moral, social e
psicologicamente, tem-se de admitir que a obrigatoriedade do atendimento há de ser
extensiva a todas as instituições de saúde, sejam elas públicas, privadas ou ditas
filantrópicas.
É preciso também que esse
atendimento seja integral e compatível com as normas de bio-segurança recomendadas pela
Organização Mundial de Saúde e pelo Ministério da Saúde, e, por isso, não se pode
aventar qualquer forma de desconhecimento ou falta de condições técnicas para recusar a
assistência. Essas instituições devem também propiciar a todos os profissionais de
saúde condições técnicas para recusar a assistência. Essas instituições devem
também propiciar a todos os profissionais de saúde condições dignas para o exercício
da profissão, inclusive os recursos para a proteção contra a infecção, com base nos
conhecimentos científicos disponíveis. A garantia dessas condições de atendimento é
de responsabilidade do Diretor Técnico de cada estabelecimento de saúde.
A infecção pelo HIV e o
paciente que vai morrer
No que se refere ao
paciente terminal, acometido de AIDS, a conduta médica deve ser a mesma que se recomenda
para todos os pacientes nesta situação de insalvável, que não esteja nas condições
dos doentes privados da vida de relação e do controle da vida vegetativa. Deste modo
não há como se permitir qualquer postura que não seja a da obrigação do médico em
cuidar do paciente, utilizando-se dos recursos de manutenção da vida na sua fase
terminal, independente da vontade dos familiares e, até mesmo, do próprio paciente nos
chamados "testamentos em vida", o qual não pode sujeitar o profissional a
atitudes de confronto com sua consciência, com a norma e com seu Código de Ética.
As deficiências da legislação
brasileira
Partindo do princípio de
que as questões de saúde pública representam um direito inerente à cidadania e uma
irrecusável e fundamental obrigação do Estado, cabe, através de uma estratégia bem
articulada junto ao Sistema Único de Saúde, uma atenção desdobrada à prevenção, ao
diagnóstico e ao tratamento da AIDS, assim como uma abordagem mais séria em favor dos
infectados pelo HIV.
Ninguém pode desconhecer que
esta doença é uma entidade sorológica grave, de evolução rápida e caminhando quase
sempre para a morte e que, devido a suas características epidemiológicas, tende a se
transformar num sério problema de saúde pública, necessitando, também, de um
encaminhamento que não deixe de contar com a participação de todos no seu controle e
prevenção. Assim, é imperativo, antes de tudo, a participação democrática de todos
os segmentos organizados e representativos da sociedade, a fim de pressionar o Estado a
assumir, por decisão política, uma postura capaz de garantir a mais ampla cobertura
sobre o problema.
Atualmente, muitos são os
países que contam com normas específicas que regulam os direitos dos pacientes
aidéticos e dos infectados, desde a proibição da rejeição de crianças
sorologicamente positivas em escolas e creches, até a censura aos pedidos de testes para
o HIV de pacientes em internamentos hospitalares.
Primeiro é necessário que se
assegure a esses pacientes o acesso ao tratamento adequado, seja no ambulatório, no
hospital ou no domicilio, incluindo nisso o fornecimento gratuito de medicamentos
necessários e eficazes no tratamento da AIDS, aprovados pelo Ministério da Saúde, afim
de que essas ocorrências não se transformem em "casos de polícia". Defendo
também a idéia - embora criticada por alguns, que se estipule em cada hospital público
ou privado, qualquer que seja sua especialidade, um número mínimo de leitos para
tratamento desses pacientes, como forma de impedir que eles sejam rejeitados no
internamento, por motivo de discriminação ou má vontade, mesmo sabendo da
disponibilidade de leitos em nosso país.
Advogo também a idéia de não
se criar leitos destinados aos pacientes apenas infectados pelo HIV, que por ventura se
internem nos hospitais para tratamento clínico ou cirúrgico, pois inevitavelmente seriam
discriminados, dando-se, inclusive, oportunidade para a exigência dos testes
pré-admissionais, convertendo-se em expediente vexatório, hostilizante e segregador.
Nessa legislação deve ficar
bem claro o direito que tem o paciente HIV-positivo da manutenção do sigilo médico, do
respeito a sua privacidade, o impedimento de demissão sem justa causa do seu trabalho, a
proibição da divulgação do seu nome ou de seus parentes em listas de resultados de
exames e o direito de ter solicitados seus exames complementares quando pedidos pelos seus
médicos assistentes.
É necessário ainda que se
estipule espaços gratuitos nos meios de comunicação para divulgação desses
interesses, a garantia dos pacientes aidéticos a todos os direitos trabalhistas,
previdenciários e administrativos, além de assistência jurídica gratuita, acesso
fácil e sem ônus ao tratamento dos hemofílicos como forma de prevenção à AIDS,
direito de receber visitas no hospital, de atendimento médico de urgência e de
intercorrências clínicas e o de ter seu corpo velado em locais e condições
respeitosas, de acordo com a reverência que se deve à dignidade humana. .
Outro fato é o da criação de
serviços de diagnóstico gratuitos, estimulando-se assim os indivíduos ao auto-exame,
sem nenhum ônus e cujos resultados sejam dados através de meios que não identifiquem o
paciente, mantendo-se o respeito a sua privacidade. Essa seria uma forma de fazer com que
um maior número de pessoas procurem esses exames.
Desestimar de uma vez por
todas, não através de uma portaria, mas por meio de uma lei, a exigência de testes
sorológicos para o HIV aos candidatos de concurso público ou ao acesso a empresas
privadas, mesmo sabendo que um mandato de segurança, neste particular, seria um remédio
tranqüilo e eficaz.
Ficar evidente na Legislação
a proibição da exigência de testes compulsórios de sorologia para o HIV, como
condição obrigatória de internamento hospitalar, pré-operatório, assim como nos
indivíduos recolhidos em estabelecimentos penitenciários, ou de internação, antes de
serem recolhidos. Isso não tem nenhum subsídio técnico ou científico, nem ajudaria em
nada esse problema, a não ser fomentar a discriminação e a intolerância.
Conclusão
Se quisermos efetivamente lutar
e vencer esse mal, devemos em primeiro lugar, não procurarmos explicações absurdas para
justificar nossa indiferença e as nossas limitações. Depois, ficar ao lado dos que
estão sendo vitimados pelo flagelo da AIDS, neste instante tão amargo da história da
humanidade.
Mesmo admitindo-se que essa
doença seja, em parte, uma invenção nossa, ninguém pode escamotear a sua gravidade
como entidade epidêmica, que agride o sistema imunológico de forma complexa, de
assustadora rapidez e, até agora, incurável.
Urge, ainda - hoje, mais do que
nunca - exigir do poder público as condições necessárias para tratar esses doentes com
a dignidade que merece a condição humana, e fazer ver à própria sociedade que a única
forma de vencer essa doença é protegendo e amparando os que estão sendo atingidos. E
também denunciar todas as injustiças cometidas, mitigando as suas dores e compreendendo
sua dolorosa solidão na hora do sofrimento e da morte.
A cura virá, não igualmente
para todos. É apenas uma questão de tempo.
Essas e outras epidemias
passarão. Assim está escrito. O que fica, infelizmente, é o perigo que o homem carrega
consigo mesmo e a falta de convicção de que seu destino está inexoravelmente preso ao
destino do outro. Se não, cabe uma mea culpa universal.
Referências Bibliográficas
![]() A perícia em casos de tortura |
![]() ![]() ![]() ![]() AIDS - Um enfoque ético-político |
![]() As razões do Código de Ética Médica de 1988 |
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Idealização, Programação e Manutenção: Prof. Doutor Malthus Fonseca Galvão
http://lattes.cnpq.br/3546952790908357
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