Eutanásia: Viver bem não é viver muito


Sacralidade e qualidade de vida

O paciente que vai morrer: direito à verdade

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Sacralidade e qualidade de vida    


Genival Veloso de França

Existe uma interminável polêmica: deve prevalecer a sacralidade ou a qualidade da vida? A primeira representaria aquilo que a vida humana tem na dimensão que exige a dignidade de cada homem e de cada mulher. E a qualidade da vida significaria um conjunto de habilidades físicas e psíquicas que facultam o ser humano viver razoavelmente bem.

        Rachels NF1 faz uma distinção entre "estar vivo" e "ter vida", ou seja, entre a vida no sentido biológico e a vida no seu aspecto biográfico. Com isso ele quer individualizar um tipo de seres humanos que, mesmo estando vivos, não tem vida. O exemplo por ele apontado seria o de um portador da doença de Alzheimer. Para este autor, estar vivo no sentido biológico tem pouca importância e, na ausência de uma vida consciente, é indiferente para o indivíduo estar vivo ou não. Além do mais, defende ele a chamada "tese da equivalência", segundo a qual não existiria nenhuma diferença entre "matar uma pessoa" e "deixá-la morrer".

        Em sua visão utilitarista e pragmática ele só considera imoral matar se isso vai privar o indivíduo dos seus desejos, de suas crenças e dos anseios que constituem um projeto de vida, atributos esses que justificariam continuar sua existência. A morte seria um mal não porque pôs fim ao estar "vivo", mas ao fim da vida na sua perspectiva biográfica. Para ele, em certos casos, "matar não implica a destruição de uma vida".

        Tal posicionamento, não apenas alcançaria as situações terminais da vida humana, mas avançaria a todos aqueles que por uma outra razão estivessem privados da consciência ou de um tipo de vida dependente.

        Assim, por exemplo, até que ponto seria eticamente correto ou imperativo manter uma vida em condições bastante precárias, como a de um prematuro com menos de vinte semanas de vida quando se sabe que seqüelas definitivas podem ocorrer? No caso "Baby Doe", não se o alimentou pelo fato de ser portador de síndrome de Down e atresia do esôfago.

        O que se vem discutindo ater agora é a condenação de uma terapêutica abusiva e obstinada em um paciente terminal cuja assistência obsessiva se mostra inútil, onerosa e desumana. Atualmente não, discute-se a qualidade de uma vida futura que alguém pode ter daqui a muitos anos. Por isso é preciso saber o que é exatamente "qualidade da vida", para não se chegar a um conceito demasiadamente elitista, como se alguém existisse apenas para disputar torneios e não para realizar o destino de simples criatura humana. O risco é que mesmo sendo hoje aquele o conceito aceito, amanhã ele pode ser muito mais exigente ainda.

        O mais surpreendente daquela posição é que a vida não é um valor no sentido moral, mas um bem apenas. Diante de tal postura, independe a condição do paciente estar consciente e solicitar a ação eutanásica, pois não restaria um valor humano para se proteger, mas apenas um estado biológico de uma vida subnormal.

        Esta posição, além de ser moralmente inconsistente por considerar a vida como coisa possuída - na qualidade do "ter" e não na do "ser", admite ainda um pensamento conseqüencialista de que matar só é diferente do roubar pelo valor estimativo dos bens perdidos.

        Quando se defende a ética da qualidade da vida, diante de situações bem concretas, em confronto com a posição tradicional da sacralidade da vida, não se quer com isso desprezar os valores da natureza humana nem "coisificar" a pessoa que existe em cada um de nós. A vida humana, independente da sua qualidade, e ainda que se venha tomar certas medidas, tem o mesmo valor e o mesmo direito de ser preservada em sua dignidade. Todavia, se qualidade de vida significa tão-somente a habilidade de alguém realizar certos objetivos na vida e quando estas habilidades não mais existem, venha desaparecer a obrigação de tratar, aí então esse conceito é pobre e mesquinho. Outra coisa: na conceituação de qualidade e quantidade da vida vem se procurando determinar o que deve ser considerado ordinário ou extraordinário.

        Para alguns NF2, sobre isto, o Vaticano colocou-se de forma muito subjetiva e muito simplista, em Declaração sobre a Eutanásia, ao afirmar: "Não se pode impor a ninguém a obrigação de recorrer a uma técnica que, embora já em uso, representa um risco ou é demasiado onerosa. Recusá-la não equivale a um suicídio; significa, antes, a aceitação da condição humana, ou preocupação de evitar adotar um procedimento médico desproporcional aos resultados que se podem esperar, ou vontade de não impor despesas demasiado pesadas à família ou à coletividade". E quando afirma que "tomar decisões corresponderá em última análise à consciência do enfermo ou das pessoas qualificadas para falar em seu nome ou inclusive dos médicos, à luz das obrigações morais e dos distintos aspectos do caso", parece-nos demasiado permissivo para que em certos momentos, até mesmo por questões econômicas, alguém venha decidir sobre a licitude ética do que constitui morrer com dignidade.

        Se o critério para o uso de um medicamento é fundamental na possibilidade de oferecer resultado a um paciente salvável, então isto é que vai determinar o que é ordinário ou não. A avaliação é sobre a qualidade da vida e não sobre a qualidade do meio. O difícil, parece-nos, é conceituar o que é "qualidade de vida" e estabelecer os limites mais objetivos ante a diversidade das situações apresentadas, e não conceituar o que seja "qualidade de meios". O conceito de qualidade de vida torna-se complexo a partir do instante em que se admite ser todo raciocínio baseado em considerações qualitativas. Este juízo é até certo ponto preconceituoso. E mais difícil ainda é classificar as pessoas baseadas em critérios de tipos de vida, ou justificar uma ética da qualidade da vida que se fundamenta no princípio simplista de que a um determinado paciente se ofereça todos os cuidados disponíveis ou não se ofereça nenhum.

        Entender também que a qualidade da vida de uma pessoa não pode ser avaliada como uma capacidade plena para o exercício de todas as habilidades. Não. O ser humano merece respeito a sua dignidade, independente do que ele consegue realizar. Ninguém existe para disputar competições de habilidades. A qualidade e a sacralidade da vida são valores que podem estar aliados. É inaceitável essa desvinculação absoluta que se faz entre sacralidade e qualidade da vida. Poderíamos até dizer que o princípio da sacralidade é o primeiro princípio, pelo menos do ponto de vista teórico, para se iniciar uma discussão sobre eutanásia. Por sua vez, a qualidade da vida não é um valor estranho ou um valor alternativo de um determinado conceito vida. É um critério de referência capaz de contribuir também com o respeito que se deve à vida humana.

        McCormick NF3 deixa isso bem claro quando afirma: "ambos enfoques não deveriam contrapor-se desta maneira. A valorização sobre a qualidade da vida deve fazer-se com absoluta reverência, como uma extensão do próprio respeito pela sacralidade da vida".

        Deve ficar claro que o juízo de valor sobre a proporcionalidade dos cuidados não é tão simples, pois ele não termina na avaliação da qualidade da vida. Devem influenciar o raciocínio médico, as razões da família e o que admite o paciente sobre a insistência das medidas terapêuticas. O fundamento ético impositivo de uma necessária assistência a um paciente terminal é a predisposição de melhores condições para que este doente conviva com sua doença e eventualmente com sua morte. Um dos erros dos defensores mais intransigentes da ética da qualidade da vida, como já dissemos, é admitir que ao paciente se dêem todos os cuidados ou não se dê nenhum, agindo assim de maneira tão caprichosa e simplista sobre questões quase sempre complexas e difíceis.

        O pensamento utilitarista que se inclina obstinadamente para o lado do valor biográfico do indivíduo - desprezando o "estar vivo" sob o aspecto biológico, erra ainda quando procura resolver as questões com a aplicação de um só critério, transformando os problemas morais em meros problemas técnicos ou estatísticos, não deixando espaço para uma reflexão sobre os valores que definem a dignidade humana nem reconhecendo a oportunidade de avaliar outras considerações. O significado da racionalidade iluminista não é compatível com uma ética biomédica que se ajusta no princípio da ponderação e do respeito à dignidade de ser humano.


Notas de Fim:

1. - Rachels, J. La fine della vita. La moralità de eutanásia. Turim: Sonda, l986.

2. - Beristain, A .Prolongamentos para a reflexão penal-criminológica sobre o direito a culminar a vida com dignidade (a eutanásia), in Eutanásia, Porto Alegre: Fasc. Ciênc. Penais, vol. 4, n.º 4, out.-dez., 1991, pags. 11-31.

3. - McCormick, RA. The quality of life, the sanctity of life, Hastings Center Report l978, 8:30-36-35.

Incluído em 08/10/2001 21:58:06 - Alterado em 20/06/2022 12:28:23





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