O ato anestésico e sua natureza jurídica


Responsabilidade civil do médico

Cirurgia plástica: Obrigação de meio ou de resultado?

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Responsabilidade civil do médico    


Genival Veloso de França

Não podemos omitir o fato de a Medicina atual ter tomado rumos diferentes da de antigamente.


Introdução

        Não podemos omitir o fato de a Medicina atual ter tomado rumos diferentes da de antigamente. Uma verdadeira multidão de acontecimentos e situações começa a se verificar em nosso derredor, como contingência da modernização de meios e de pensamentos. Não estamos mais na época em que o medico exercia, de forma quase solitária e espiritual, uma atividade junto a quem pessoalmente conhecia. Hoje, e ele um pequeno executivo que se rege por regras e diretrizes traçadas por uma elite burocrática que tudo sabe e tudo explica. A Medicina-Arte agoniza nas mãos da Medicina-Técnica. A erudição medica vai sendo substituída por uma s6lida estrutura instrumental.

        O medico de família morreu. Deu lugar ao técnico altamente especializado, que trabalha de forma fria e impessoal, voltado quase que exclusivamente para esses meios extraordinários que a Tecnologia do momento pode oferecer. Surge o medico de plantão, ou de turno.

        Esse médico foi obrigado a trocar uma deontologia clássica e universal por um sistema de normas compatíveis com a realidade vigente, nem sempre ajustáveis a. sua consciência e determinação. Viu-se envolvido por uma terrível espiral irreversível, onde certos valores afetivos, consagrados como úteis e necessários, converteram-se em solicitações que o imediatismo exige para a satisfação de ordem puramente material. Não se diga que tudo isso tem como responsável o medico. Nasceu do próprio mundo.

        Mudou também o paciente. Antes, era ele um grande preocupado com suas obrigações. Hoje ele o e também com seus direitos. Já começa a contestar e exigir diversas condutas ou faz da doença a matéria-prima de sua própria sobrevivência.

        A Sociedade, por sua vez, também não ficou indiferente as mudanças. A sociedade capitalista-industrial, utilitarista e pragmática, embasada em parâmetros de produção e consumo, sacrifica o indivíduo como ser humano e tende a supervalorização do coletivo. Gera-se uma mentalidade tecnocrata embriagada com os vertiginosos sucessos, em que o homem começa a ser despersonalizado e desvalorizado como uma simples coisa, inexpressivamente, colocado dentro dessa pungente realidade que ele próprio criou e não pode mais controlar. Este pensamento instituiu uma modalidade de medicina, em que o homem passou a ser um grande enfermo numa coletividade crescentemente mais alienada. Essa sociedade criou a medicina dos sintomas.

        Apareceram as Empresas Medicas privadas, cada dia mais proliferantes, cada dia mais opulentas. E já surgem as multinacionais de serviços médicos, segurando a saúde em qualquer canto do mundo em que alguém possa estar, mudando apenas as cores de suas cruzes. A doença passou a ser uma fonte de riqueza,

        Já se disse com muita propriedade que, assim como o humilde farmacêutico que manipulava as formulas medicas, o simpático guarda-livros e o lírico comerciante de bairro foram substituídos, respectivamente, pelos poderosos complexos industriais farmacêuticos, pelos requintados escrit6rios de auditoria e planejamento e pelos majestosos supermercados: numa luta impiedosa e desigual, na tentativa da conquista dos mercados. A Medicina também não esta conseguindo livrar-se desse fatalismo.

        O medico, por sua vez, o pobre medico isolado e esquecido, de dois empregos e carro a prestação, não pode ser responsável por um estado de coisas que ele não criou, para o qual ano foi consultado e para o qual ano concorreu. Esse médico ano vai poder sobreviver com dignidade ou mesmo com as mínimas condições de subsistência. Terá de ser fatalmente atraído e esmagado pela engrenagem das grandes Empresas Medicas, gananciosas e desumanas, ávidas de mão-de-obra barata e lucros formidáveis.

        Finalmente, surgiu o risco. Ha certas profissões, e a Medicina é uma delas, que, por sua natureza e circunstancias, criam perigo de danos a outrem. Ano existe medico, por menos experiente que seja ou paciente por mais ingênuo que possa parecer, que ano estejam cientes do risco gerado na tentativa de salvar uma vida ou restabelecer uma saúde. Mesmo o mais tímido e discreto ato medico e passível de risco.

        Esse é o preço que vem pagando o paciente pelos mais espetaculares progressos que a tecnologia tem emprestado a Medicina. Assim, tem sido o tributo de todas as comunidades beneficiadas pela civilização hodierna. São as vantagens do risco-criado.



Fundamentos

        "O fundamento da responsabilidade civil está na alteração do equilíbrio social produzida por um prejuízo causado a um dos seus membros. O dano sofrido por um indivíduo preocupa todo o grupo porque, egoisticamente, todos se sentem ameaçados pela possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, sofrerem os mesmos danos, menores, iguais e até maiores" (Hermes Rodrigues de Alcântara, in Responsabilidade Médica, Rio de Janeiro: José Konfino Editores, 1971).

        A responsabilidade civil gira em torno de duas teorias: a subjetiva e a objetiva.

        A teoria subjetiva tem na culpa seu fundamento basilar. No âmbito das questões civis, a expressão culpa tem um sentido muito amplo. Vai desde a culpa stricto sensu ao dolo. É o elemento do ato ilícito, em torno do qual a ação ou a omissão leva à existência de um dano. Não é sinônimo, portanto, de dano. E claro que só existirá culpa se dela resulta um prejuízo. Todavia, esta teoria não responsabiliza aquela pessoa que se portou de maneira irrepreensível, distante de qualquer censura, mesmo que tenha causado um dano. Aqui, argüi-se a responsabilidade do autor quando existe culpa, dano e nexo causal. Seu fundamento e todo moral: primeiro, porque leva em conta a liberdade individual, e depois porque seria injusto atribuir a todos, indistintamente, conseqüências idênticas a um mesmo fato causador. Não faz injustiça com o autor, mas a deixa fazer contra quem já sofre a contingência de ser vítima.

        No entanto, atualmente, essa teoria começa a ser contestada por várias razões: a imprecisão do conceito de culpa pelo cunho teórico e caracterização imprecisa, o surgimento da responsabilidade sem culpa, o sacrifício do coletivo em função de um egoísmo individual sem justificativa nos tempos atuais e a socialização do direito moderno.

        Assim, o conceito de culpa vai se materializando, surgindo a teoria objetiva da responsabilidade que tem no risco sua viga mestra. O responsável pelo dano indenizará simplesmente por existir um prejuízo, não se cogitando da existência de sua culpabilidade, bastando a causalidade entre o ato e o dano para obrigar a reparar. O nexo causal consiste no fato de o dano ter surgido de um determinado ato ou omissão. No momento em que a noção de culpa passa a ser diluída, a idéia de risco assume um plano superior.

        Os que contrariam esse conceito admitem ser a teoria objetiva materializadora, vingativa, baseada na justiça do olho por olho e do dente por dente do talião, preocupada no aspecto patrimonial em prejuízo das pessoas. Entretanto, tais argumentos não se justificam, pois não se cogita represália nem vindita, senão da solidariedade e da eqüidade, fundamentos basilares da nova conceituação da responsabilidade civil. Longe de significar a volta ao primitivismo, reflete a sensibilidade do doutrinador ante os fenômenos sociais, conseqüentes e inevitáveis nesses tempos de hoje.

        Na verdade, a teoria do risco despreza o subjetivismo jurídico e os pontos de vista filosóficos, para atender ao principio da necessidade que as sociedades contemporâneas estão a exigir, como uma política de igualdade diante dos sacrifícios impostos no interesse público.

        A primeira vista, responder alguém por danos que tenha causado sem culpa parece uma grave injustiça. Também não seria menor injustiça deixar a vitima sujeita a sua própria sorte, arcando sozinha com seus prejuízos. A solidariedade é o maior sentimento de justiça. Reparar todo e qualquer dano seria o ideal da própria solidariedade humana.

        Morin, citado por Albino Lima, assegura: "Se a noção de responsabilidade materializou-se no sentido de não procurar o elemento moral subjetivo, não desprezou, entretanto, os princípios de uma elevada moral social, dentro de um sistema solidarista que não enxerga indivíduos justapostos e isolados, mas um organismo de humanidade no qual todos os membros são solidários" (in Culpa e Risco, São Paulo: Editora RT, 1963). Esse é o principio da responsabilidade sem culpa.

        Indenizar o dano produzido sem culpa é mais uma garantia que propriamente uma responsabilidade. E não se pense que os "reparados" pelo dano tirem vantagem disso. Os danos são sempre maiores que a reparação.

        A responsabilidade civil do medico sempre provocou varias controvérsias, não apenas pela sua inclusão ora no campo contratual, ora no campo extracontratual; mas, principalmente, pela maneira mais circunstancial em que a profissão é exercida. A tendência é colocá-la na forma contratual, até mesmo no atendimento gratuito.

        É claro que o médico, ao exercer suas atividades junto ao paciente, sua intenção é beneficiá-lo. Mesmo assim o dano pode surgir. Isso o obriga, pela teoria objetiva da responsabilidade, a reparar o prejuízo, pois uma vontade honesta e a mais cuidadosa das atenções não eximem o direito de outrem. O certo é que os tribunais até a algum tempo somente caracterizavam a responsabilidade médica diante de um erro grosseiro ou de uma forma indiscutível de negligência. Hoje a tendência é outra: apenas a inexistência de nexo de causalidade, de força maior, de atos de terceiros ou de culpa do próprio paciente isentariam o médico da responsabilidade. Infelizmente, a inclinação desses tribunais é retirar dos médicos uma série de privilégios seculares, mesmo sabendo-se que as regras abstratas da justiça nem sempre são de fácil aplicação nos complexos e intricados momentos do exercício da Medicina. O médico passa a ser, a cada dia que passa, uma peça a mais, igual às outras, do organismo social.

        Portanto, assim como não e fácil estabelecer a responsabilidade penal do médico, sua responsabilidade civil começa a sofrer profundas modificações. Seus aspectos se voltam exclusivamente para o caráter político-econômico, tendo como princípio mais aceito o da repartição dos danos, caracterizado por uma exigência econômica em decorrência da qual qualquer dano deve ser repartido entre os envolvidos. O que se pretende na responsabilidade civil - quase ilimitada - é tão-somente assegurar o equilíbrio social, quando um prejuízo produzido poderia causar dano a um dos membros do grupo.

        Clovis Bevilaqua afirmava: "O Direito Penal vê, por trás do crime, o criminoso e o considera um ente anti-social, ao passo que o Direito Civil vê, por trás do ato ilícito, não simplesmente o agente, mas principalmente a vítima, e vem em socorro dela, a fim de, tanto quanto lhe for permitido, restaurar seu direito violado, constituindo a eurritmia social refletida no equilíbrio dos patrimônios e das relações pessoais, que se formam no círculo do direito privado" (in. Teoria Geral do Direito Civil, 2ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 1929).

        O direito moderno procura fugir do subjetivismo dos velhos conceitos filosóficos, procurando aproximar-se do fato por uma aspiração do ideal de igualdade. Chega de desigualdades políticas, étnicas, econômicas, sociais e até mesmo geográficas. É claro que essa solidariedade social da repartição dos danos não deve ser rigorosamente tida como uma igualdade matemática.

        Pelo que se revela, a visão dos tribunais está se voltando para a reparação do dano, pouco importando que o resu1tado seja demonstrado por uma falha instrumental ou da ciência, quando a culpa do médico não chegou a ser comprovada. Esta responsabilidade do médico está presa pelo aspecto contratual que faz da relação médico-paciente um contrato de locação de serviços. Os julgadores não estão muito preocupados em examinar profundamente as razões subjetivas da culpa, senão apenas em reparar o dano. Houve até quem sentenciasse: Não há nada de imoral, mesmo na ausência da culpa, em obrigar a reparação da coletividade pública causadora do dano por atos de seus agentes.

        Só nos acodem uma solução para o grave problema das demandas civis contra médicos, oriundas do exercício da profissão: a criação do seguro de responsabilidade civil médico.



Bibliografia

1. - ALCANTARA, HR, "Responsabilidade Médica", José Konfino Editor, Rio de Janeiro, 1971.
2. - ASSIS, AO, "Compêndio de Seguro Social", FGV, Rio de Janeiro, 1973.
3. - BEVILAQUA, C, "Teoria Geral do Direito Civil", 2a Ed., 1929.
4. - DALBERT, JEFFERSON, "Das Obrigações", Ed. FORENSE, Rio, 1972.
5. - DIAS, JA, "Cláusula de Não-Indenizar", Ed. FORENSE, 3ª Ed., Rio, 1970.
6. - FOURNIER, E., "Medicine Legale", Flamarion Medecin-Science, Paris, 1973.
7. - FRANÇA, GV, "Direito Médico", Fundo Editorial Procienx, 6ª Ed., São Paulo, 1995.
8. - FRANÇA, GV, "Flagrantes Médico-Legais", Imprensa Universitária, João Pessoa, 1974.
9. - FRANÇA, GV, "Medicina Lega1", 5ª edição, Ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1995.
10. - LIMA, A, "Culpa e Risco", Ed. RT, São Paulo, 1963.
Texto do livro
"Direito Médico" 7ª ed.
Fundo Editorial ByK, SP
(no prelo)

Incluído em 08/10/2001 21:42:54 - Alterado em 20/06/2022 13:48:24





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