Paciente Terminal


A alienação da dor

Nos limites do fim da vida: um itinerário de cuidados

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A alienação da dor    


Genival Veloso de França
              A civilização de consumo conseguiu modificar a experiência da dor, esvaziando do indivíduo suas reações pessoais e transformando essa sensação num problema de ordem puramente técnica. A supermedicalização da dor tende a retirar do homem sua participação e sua responsabilidade, criando um novo estilo de saúde.

              Ninguém pode negar que o limiar de tolerância da dor venha sofrendo profundas alterações e que a medicina moderna torna-se mais e mais cúmplice de uma assustadora dependência farmacológica e de uma industrialização pela empresa farmacêutica.

A medicina industrial, para atuar mais prontamente, retira da dor qualquer contexto subjetivo. O sentido da palavra "dor" foi modificada pela linguagem profissional. A única formula que o modelo médico atual encontrou de vencer a dor foi torná-la cada vez mais objetiva. Tão objetiva quanto a linguagem impessoal entre médicos e enfermeiros. Essa maneira de atuar junto à dor desloca o Homem para um novo espaço ético e político.

              Nada mais fácil, para entender tais aspectos, que acompanhar a história da medicalização da dor. Antes, não era ela tratada, haja vista nada mais representa que um instrumento a serviço do diagnóstico, dando ao médico a oportunidade de descobrir qual a harmonia perdida. Durante o tratamento, a dor até poderia desaparecer, mas de fato esse não era o interesse imediato da atividade médica, para quem a dor significava um certo benefício em favor da conservação do próprio homem.

              Quando a dor perdeu seu sentido cósmico e mítico, emancipada de qualquer referencial metafísico, seu controle deu ao indivíduo o entendimento de que a sensação dolorosa é um ponto clínico objetivo e que pode ser debelado por uma terapia simples e padronizada.

              Existe um fenômeno coletivo comum às comunidades angustiadas: fazer do normal uma coisa rara. Um desequilíbrio fisiológico antigamente considerado como natural é hoje coletivamente medicalizado pela oferta fácil dos que podem dispor de um remédio moderno e ativo. Os meios de divulgação não se cansam de impor à população uma sintomatologia-tipo, facilmente tratada e prontamente curada. Entre elas, a mais comum é a dor.

              Michel Foucault afirma que atualmente a dor foi transformada em problema de economia política, em que o homem se coloca como "consumidor de anestesia", à procura de tratamento que o faz artificialmente insensível, abúlico e apático. Ivan Illich observa que esse indivíduo não vê mais, na dor, uma necessidade natural, mas que ela representa, desde logo, como resultado de uma tecnologia faltosa, de uma legislação injusta ou de uma defasagem social e econômica.

              A dor, como objeto de diagnóstico e tratamento, classificada como real ou imaginária, foi, sob o ponto de vista sócio-econômico, vítima do confisco técnico do sofrimento, através de uma cultura supermedicalizada. Na realidade, o que se tem feito não é outra coisa senão medicalizar o sofrimento - a palavra "dor de cabeça" vai perder seu sentido na linguagem comum e se fortalecer como termo técnico.

              Desde o momento em que a dor se tornou coisa manipulável, passando a ser matéria de superproteção, em que o médico é capaz de diagnosticar, medir e provocar esse fenômeno, a sociedade aceitou tal procedimento e rendeu-se a ele, numa forma de solução para seus fracassos. Entretanto, simplesmente medicalizar a dor é correr o risco de perder sua face essencial.

              A inclinação da medicina em favor da analgesia se insere num contexto ideológico e sua eliminação institucional tende a se refletir na angústia dos dias de hoje. O próprio progresso social passou a ser sinônimo de ausência de sofrimento, em que a comunidade empresa teria como alvo não o sentido de alcançar a felicidade, mas o de minimizar o sofrimento. A tendência será essa empresa fabricar um remédio para cada mal: para o tédio, para a tristeza e para a insatisfação, assim como criou medicamentos para a dor.

              Não se pode condenar a sociedade de agora, por estar dominada pela analgesia, mesmo que ela comece a perder sua fantasia, sua liberdade e sua consciência. Mas é desta maneira que ela foge da angústia e da solidão - dois monstros que ameaçam a existência humana. E chegará um dia em que os choques, os tumultos, as catástrofes, a violência e o horror serão os únicos estímulos capazes de chamar a atenção do homem para si mesmo e de ter a certeza que ainda está vivo.

              Por outro lado, começa a surgir, mais fluentemente, um novo tipo, que se pode chamar de homo crucians (ou, no plural, homines cruciantes - "homens dolorosos"). Não são pessoas anormais ou paranormais, monomaníacos, interessadas apenas em ocupar sua atenção com a dor chamada psicogênica. São indivíduos intimamente ligados aos valores humanos e que se colocam em permanente estado de sofrimento. Essa dor não se localiza. Ela envolve toda personalidade. A história do homem doloroso é a mesma de todas as histórias humanas, a que não faltam mártires e heróis. Ele desponta e se alimenta de um meio social de valores desequilibrados, daí atraindo todo sofrimento para si próprio.

              A visão humanista do médico deve enxergar esses indivíduos como uma unidade distinta, autônoma, dentro de uma realidade própria, compreendendo suas ânsias e seus sonhares, segundo sua convicções e não de acordo com as normas ortodoxas da lex artis.

Incluído em 21/09/2001 15:57:42 - Alterado em 20/06/2022 21:23:59






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