Exame em DNA - Meio de prova


Dom Quixote

Promoção Pessoal: Como o fazê-lo de forma ética?

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Sérgio Kalili

O médico Ronaldo Fiore tem um dossiê de tudo o que viu de errado em 15 anos na área da saúde e decide romper o que chama de "lei do silêncio" na medicina brasileira.

"Juro!", repetem os 160 formandos que compõem o paredão negro de becas, ao ouvir o colega orador pronunciar, durante a cerimônia de formatura da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, os preceitos: "... Em toda a casa, entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução...". Eles estão prestando o Juramento de Hipócrates, o lendário personagem que as enciclopédias chamam de Pai da Medicina e que viveu na Grécia antiga de 460 a.C. a 355 a.C. A cena se passa no final de 1983, e, entre os 160 rapazes, há um sorridente formando, que só de estar ali já se considera vitorioso. Ronaldo Fiore é exceção no meio desses jovens abastados, vem de família pobre, filho de um carcereiro do Carandiru, a Casa de Detenção de São Paulo. Estava mesmo deslumbrado. Acreditava no juramento e na sinceridade dos colegas. E, assim, chegara a hora de voltar à periferia, onde havia morado, para levar saúde.

Passados os anos, o sorriso deu lugar ao constrangimento, e a crença deu lugar à repulsa. Hoje posa à minha frente um profissional frustrado, mas não derrotado. "Procuro não perder a capacidade de me indignar", diz ele.

A insensibilidade que doutor Ronaldo encontrou no exercício da profissão em regiões miseráveis da cidade o impele à quebra da "lei do silêncio". Médico de periferia, ex-dirigente do Sindicato dos Médicos, ex-representante da categoria no Conselho Municipal de Saúde e talvez o único profissional de medicina a colaborar de maneira mais intensa com a Associação das Vítimas de Erros Médicos, em São Paulo, ele quer abrir o jogo.

Ronaldo Fiore está com três empregos. Todas as manhãs, nos dias de semana, cumpre seu horário no sobrado de frente estreita e fundos a perder de vista da Secretaria Municipal do Bem-Estar Social, no bairro da Freguesia do Ó. Fica numa sala com pelo menos outros dez funcionários. "Não tenho uma função específica aqui", diz, constrangido. Com quase quinze anos de profissão, fica ali ouvindo rádio, lendo e anotando recados telefônicos dos outros – só não faz exercer o ofício. É um dos 14.000 funcionários da Prefeitura exilados de suas funções na Secretaria Municipal de Saúde por não aderir ao PAS, o Plano de Assistência à Saúde do município.

– Ainda existe o que chamam de "máfia de branco"?

– Acho que sim. Um médico dificilmente fala de alguma coisa errada que outro fez. É uma coisa meio mafiosa. É a questão do sigilo de informação. Os mafiosos se protegem. É uma comparação, em que, óbvio, a gente guarda as devidas proporções.

– Quem forma a máfia de branco?

– São mais os médicos que estão no poder, muitos secretários de Saúde pelo país afora, em nível municipal e estadual; médicos diretores de hospital; médicos empresários, responsáveis por grande parte das medicinas de grupo, esse lado mercantilista muito forte na medicina; e os que escondem os atos ruins e equivocados da categoria. Não incluiria os omissos que são um grande contingente de médicos. Esses aí não dá nem para dizer que fazem parte da máfia de branco. São omissos em tudo. É a grande maioria. No entanto, a categoria tem também profissionais muito bons.

Foi depois de dez anos de profissão que doutor Ronaldo despertou para aquela que seria sua maior arma contra a lei do silêncio – a prova material para suas denúncias. Passou a colecionar prontuários médicos, em que está descrito cada um dos procedimentos adotados com os pacientes, desde a hora da entrada no hospital até o término do tratamento. É possível reconstituir passo a passo a ação de médicos e enfermeiros. A papelada fica em poder do hospital, que só é obrigado a ceder cópia ao paciente ou aos familiares, caso o exijam. O prontuário pode revelar tanto um erro médico quanto a total falência de um complexo hospitalar.

Ronaldo Fiore analisa prontuários para a Associação das Vítimas de Erros Médicos. Ele procura esclarecer histórias de pessoas que deram entrada em hospital em busca de cura, mas saíram com seqüelas irreversíveis ou acabaram morrendo de forma misteriosa. Traduz o vocabulário específico dos colegas, um idioma incompreensível, de uma corporação que consegue manter tudo em segredo. Mesmo a magistratura encontra dificuldades para julgar questões da área médica. Em 30 de setembro de 1988, o juiz Teodoro de Souza Lopes arbitrava sobre uma suspeita de erro médico. Examinando o caso, mal impressionado escreveu: "É fato notório a dificuldade de tal prova (de culpa) em face da união que existe na classe médica, chegando a mesma a ser taxada popularmente de máfia branca". E continua: "Parece que, de fato, existe um código de honra, onde o que primeiro se atende é não contrariar o colega médico, deixando-se a plano secundário se o colega errou ou não. Ao que parece, dá-se maior valor ao chamado ‘Código de Honra’ do que ao Juramento de Hipócrates".

Por sua luta, doutor Ronaldo já foi chamado de "traidor", "inimigo da classe" e "Dom Quixote". Alguns colegas viraram o rosto, outros se afastaram e ele chegou a sofrer ameaças do tipo: "Você não arruma emprego mais em lugar algum".

– Um juiz de direito precisa de pessoas ligadas à área médica para ajudá-lo a entender um caso – diz o doutor.

– Mas não existem peritos para fazer isso, na Justiça?

– Existem, mas não com esse levantamento que faço de toda a ficha da pessoa, a evolução clínica, os medicamentos dados, os exames realizados. Acabam pegando apenas o episódio em si, sem ver o histórico. Analiso o prontuário e digo: houve erro aqui; a conduta foi incorreta ali. "Traduzo" o prontuário e dou minha opinião, como você está vendo aqui.

O prontuário que me exibe é o de uma criança que morreu em parto natural quando era necessária cesariana. Junto, a análise do documento, escrita por ele: "O péssimo resultado – a morte de um recém-nascido que tinha tudo para ser normal – denota a imperícia da equipe médica que conduziu esse parto". Sem a autorização da mãe, parte dos nomes dos personagens dessa história foi suprimida, ficando apenas o prenome dos médicos. Um prontuário revela o que pode acontecer ao paciente entregue a médicos não muito inspirados, entre as quatro paredes, de uma sala de hospital.

Quarta-feira, 18 de janeiro de 1997, Hospital Amico Santo André. O relógio da sala de parto marca 18h20 da tarde. Durante mais de meia hora, a equipe médica vai insistir no parto natural. O que está entre parênteses é anotação do doutor Ronaldo: "É feito o bloqueio anestésico local para episiotomia (corte na pele e musculatura para facilitar a saída do feto), sem sucesso (o parto não progredia). Posteriormente, bloqueio do lado esquerdo para locação do fórcipe pela dra. Soraya, sem sucesso. Tentado fórcipe pela dra. Adrienne, com extração traumática do feto às 18h55, feto totalmente parado (parada cardiorrespiratória). Tentada reanimação sem sucesso, óbito às 19h45".

O primeiro prontuário do arsenal do doutor Ronaldo é de janeiro de 1993. Envolve outra criança. Foi escrito por uma pediatra aflita em salvar a vida de um bebê, dentro de um hospital sucateado. Ao contrário da maioria, ela resolveu documentar a falta de condições de trabalho daquele dia.

– A maior parte dos médicos omite a falta de recursos, principalmente em hospital privado, pois se registrar é demitido. E a doutora teve inteligência e coragem de colocar o número de cada um dos aparelhos que falharam – diz o doutor.

Ele prefere não revelar o nome da pediatra que atendeu essa criança no Hospital Regional de Ferraz de Vasconcelos, município pobre e periférico de São Paulo. A mãe, a empregada doméstica Eliana Rodrigues, chegou desesperada ao pronto-socorro do hospital, carregando o bebê, que havia dois dias sofria de intenso desarranjo intestinal. Desidratado, estava com peso abaixo do normal para a idade. Estava muito debilitado. A mãe contou que ele nascera de sete meses, 25 dias antes, em outro hospital, próximo, o de Itaquaquecetuba. Devia ter permanecido lá, na estufa, mas foi liberado. Em casa, começou a ter diarréia. Ela voltou com a criança. "Eles receitaram Luftal para o meu filho. Em Ferraz, a doutora que me atendeu disse que esse remédio fez mal ao menino", contou a mãe a um jornal que noticiou o caso.

Agora, na sala do pronto-socorro de Ferraz de Vasconcelos, o bebê tem uma parada cardíaca, que a equipe reverte com massagem, oxigenação e adrenalina, mas a situação ainda não está controlada. É preciso agir com rapidez para o coração continuar batendo. E os equipamentos começam a falhar. O prontuário diz o que devia ter sido feito: "Entubar (aplicar oxigênio por um tubo na traquéia, auxiliando a respiração), o que não foi possível, pois havia secreção gástrica e fecalóide em via oral e, ao tentarmos aspirar, o aspirador, com placa patrimônio nº 22595, não funcionou. Foi necessário ir até a emergência de adultos para buscar aspirador [perda de 5 min]. Quando estávamos c/ aspirador funcionando, o laringoscópio da observação infantil, placa patrimônio nº 06519, apresentava mau contato, desligando-se quando pressionava a língua da criança. Foram buscar laringoscópio na pediatria [perda 10-15 min]. No entanto, era laringoscópio de tamanho inadequado para o tamanho da criança [tivemos que improvisar]. Neste ínterim, a criança apresentou nova parada, rapidamente revertida. Após a criança entubada, perdeu-se 20 minutos até que o técnico da manutenção ligasse o compressor de ar comprimido para que houvesse pressão suficiente na rede [estava a zero] para que o respirador funcionasse [visto que a pressão oferecida pelo cilindro de ar comprimido não era suficiente para que o aparelho ciclasse]. Após todo esforço de funcionários em geral, a criança apresentou nova parada cardíaca que não reverteu... Constatado óbito 9h50".

O bebê dera entrada às 7 horas.

Três dias depois da morte, o diretor-interino do hospital, o médico Luiz Antônio do Nascimento, ignorou o prontuário e silenciou sobre os problemas de equipamento. "O que provavelmente ocorreu foi apavoramento, devido à gravidade do caso, da equipe que atendeu o menor", declarou ele.

Na época, doutor Ronaldo trabalhava nesse pronto-socorro, do qual já havia sido coordenador. O caso dava-lhe a chance de mostrar a "falência generalizada da Saúde" ao juntar as falhas no atendimento prestado em Itaquaquecetuba com a falta de estrutura de Ferraz. E ele acreditava que, divulgando prontuários como esse, sensibilizaria os próprios médicos a relatar os fatos de maneira mais clara, "porque, se não escrever, o médico que agiu corretamente não tem como se defender".

O espírito crítico tinha vindo com o tempo. "No começo, eu era um pouco alienado até politicamente." Ronaldo nasceu em São Paulo, em 1959. Viveu a infância e a adolescência na zona norte, com dois irmãos e duas irmãs adotivas, próximo ao trabalho do pai, que era no Carandiru. "Éramos classe média baixa ou classe pobre alta", brinca. "Meus pais não tiveram oportunidade de estudar." Sem casa própria, a família pulava de casa em casa. E ele de escola em escola, sempre na rede pública de ensino. Na adolescência, com seu quase 1,90 metro de altura, começou a praticar basquete. Aos 15 anos foi convidado para jogar por um colégio particular, em troca de bolsa de estudos. O esporte lhe rendeu a oportunidade de fazer o colegial em uma boa escola. Até então, nunca pensara em universidade. Queria arrumar logo um emprego para ajudar a família. "Pensava em fazer contabilidade, mas, convivendo naquele meio em que era natural fazer faculdade, comecei a sonhar." Em 1977, já aluno da Faculdade de Medicina, enquanto o pau comia (época do general-presidente Ernesto Geisel), Ronaldo não queria saber de nada além de colecionar amizades e troféus de basquete em jogos universitários. "Foi mais ou menos na época da invasão da PUC. Um ano antes, o nosso centro acadêmico, um dos mais fortes da USP, tinha sido invadido", diz. "Se fosse hoje, com certeza, eu estaria enfronhadíssimo." Terminou a faculdade e fez residência em pediatria no Hospital das Clínicas. Em 1987, chegou a Ferraz, onde trabalhou até 1995.

No começo, o hospital tinha leitos, equipes completas, fartura de medicamentos, corpo clínico de nível excelente, que operava no Hospital das Clínicas e na Santa Casa. "Era a prova de que é possível ter medicina pública decente." De ruim, só o nome novo do hospital. Havia um ano o Estado tomara o hospital do proprietário, Osíris Florindo Coelho, médico acusado na época de uma série de atos de corrupção envolvendo o extinto Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Osíris morreu pouco depois e os políticos locais se mobilizaram para aprovar um projeto de lei, na Assembléia Legislativa de São Paulo, homenageando o falecido. O nome do hospital ficou Dr. Osíris Florindo Coelho. "Justamente, o bandido. Deram o nome do hospital para o corrupto-mor ali", diz doutor Ronaldo.

A decadência vem na virada da década. O hospital se transforma totalmente. Era cruzar a porta e ver o sofrimento, a maioria dos doentes em macas nos corredores do pronto-socorro; leitos desativados; rachaduras nas paredes; falta de higiene, de remédios; infecção hospitalar alta.Todo mês chegando 15.000 pessoas, de Poá, Itaquaquecetuba, Mogi das Cruzes e outros oito municípios vizinhos. Corriam para o maior hospital da região, responsável pelo atendimento de uma população superior a 500.000 habitantes. Muitos médicos foram embora por causa dos baixos salários. Caíra o nível do corpo clínico. Crescia o número de erros médicos e de falhas em equipamentos. No final de 1993, indignado, doutor Ronaldo se embrenhara em duas ações: primeiro, participara de uma greve por salário; depois, praticamente sozinho, passara a denunciar o aumento de falhas dos colegas. Não suportava mais o silêncio do corporativismo.

– A partir de 1988/89, tem início a degradação na Saúde. E peguei esse momento de todo o Brasil em Ferraz, a diminuição dos recursos resultando na piora do atendimento à população. Isso começou a me revoltar.

Na época, pipocavam greves por toda parte. A população aumentava, o dinheiro para a Saúde não. Era o tempo de Fernando Collor. Atingiu-se um recorde histórico: em 1992, o Brasil gastava em Saúde 65 dólares por habitante enquanto países como os Estados Unidos, a França e o Canadá investiam mais de 2.000 dólares. A escassez continua até hoje. "Eles apenas disfarçam mais, não deixam os pacientes em macas nos corredores", diz o doutor. Estimativas do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde indicam que os gastos da União com saúde, este ano, são menores do que eram uma década atrás. Não deverão, passar de 73,9 dólares per capita, menos do que em 1987, quando eram de 74,8 dólares. Gilson Carvalho, assessor técnico do conselho, pediatra e médico de saúde pública, acusa o governo de tentar "esconder o desfinanciamento da Saúde".

– Doutor Ronaldo, quase dez anos brigando, adiantou?

– Tento permanecer otimista, mas fico decepcionado. Você vê ressurgirem vários políticos responsáveis por parte do desastre da saúde ou politicos que, no passado acadêmico, ao contrário de mim, eram superativos, brigavam, apanhavam, hoje, acomodados. O maior exemplo é o Fernando Henrique.

Para doutor Ronaldo, a falta de recursos públicos ampliou o espaço de médicos de consultório e hospitais particulares interessados em enriquecer de forma desonesta. E ele passou a denunciar mais erros, provocados pela ambição. "Muitos médicos acabam indicando maior quantidade de cirurgias para ganhar mais dinheiro. É a mercantilização da medicina; pessoas ligadas a área, não só médicos, que visam exclusivamente o lucro. Usam, muitas vezes, argumentos mentirosos para conseguir isso." Ele ilustra com o caso recente de uma mulher que levou o filho a um otorrino que disse a ela o seguinte: "Senhora, seu filho tem que operar as amídalas imediatamente, caso contrário pode morrer." Deu a explicação "científica": no meio da noite, as amídalas poderiam inchar e fechar a garganta da criança, sufocando-a. "Absurdos que um leigo acaba aceitando", diz ele, que examinou o menino e verificou que o caso não era de cirurgia. Aos olhos de colegas inescrupulosos, um resfriado torna-se broncopneumonia, uma simples lesão, cirurgia de joelho. "Isso existe em nível exagerado, já vi bastante por aí."

Há alguns anos, ele procurava emprego e interessou-se por um anúncio de jornal. Ligou para o hospital. Atendeu uma funcionária. Ele perguntou sobre o salário. Ela respondeu em tom natural: "Olha, o salário é tanto, não é muito alto, mas tem um detalhe: a direção do hospital oferece um extra para cada paciente que você internar. Com isso, você tem condições de ganhar bem".

Ele critica também a medicina de grupo. "A maioria oferece serviço ruim. Se o serviço público fosse melhor, as más empresas de grupo não estariam aí." O setor privado atende hoje 41 milhões de brasileiros. Hospitais e médicos de convênio ganham por volume de consulta e procedimento. Às vezes, empresas de convênio-saúde estipulam valores tão baixos por consulta que, para lucrar, o médico presta atendimento relâmpago. "A maioria dos hospitais acaba forçando a situação tentando promover o maior número possível de atendimentos."

– Doutor Ronaldo, quais os sinais de que o governo está saindo da Saúde?

– O número de hospitais particulares que aumentou muito nos últimos anos, clínicas que só atendem convênio e particular. É um sinal evidente da falência do sistema público de saúde.

Em cinco anos, de 1993 a 1997, o investimento no setor privado da saúde pulou de 8,5 bilhões de dólares para 18,5 bilhões no país. "O Brasil fica cada vez mais parecido com os Estados Unidos, onde o grau de privatização é acentuado, a ponto de 75 por cento da população estar incluída no setor pela sua capacidade de se acessar via mercado" – trecho do relatório de pesquisa do professor Emerson Elias Merhy, da Universidade de Campinas, sobre "Projetos neoliberais privatistas que têm influenciado o imaginário dos vários atores que disputam o sentido da reforma do sistema de saúde na América Latina".

A luta de doutor Ronaldo contra a mercantilização custou-lhe um de seus empregos. De 1991 a 1996, ele trabalhou no Pronto-Socorro Municipal Júlio Tupy, no Jardim Robru (zona leste), região miserável da periferia paulistana. Como não aderiu ao PAS, não pôde mais trabalhar lá. Foi quando o puseram de castigo na Secretaria do Bem-Estar Social, onde está até hoje.

– O PAS introduziu o lucro no serviço público. Qualquer paciente que apresentar um problema mais sério eles não querem atender porque vai dar despesa e as cooperativas (de médicos que formam o PAS) vivem de lucro. Muita gente que deixou de ser atendida me procura no consultório.

Ronaldo Fiore encerra a conversa, são 13 horas, tempo de seguir para o segundo emprego, o Pronto-Socorro Portinari, mini-hospital particular com quinze leitos e uma pequena sala de cirurgia, usada para emergências, como partos, na Vila Jaguara, zona oeste da cidade. Ele vai trabalhar ali até 6 da tarde. Atende uma criança resfriada, que não pára quieta; outra, acompanhada do pai; agora , uma com a avó e um bilhete da mãe, impedida de estar ao lado do filho no exame: "Boa tarde, dr. Ronaldo, meu filho tem tossido muito...". Ele aproveita o pedaço de papel para responder cordialmente. Depois me diz: "Muitas vezes, você vê o pai desempregado e a mãe empregada. Vinte, 30 anos atrás era diferente. A observação da mãe é fundamental no meu trabalho". Fim de expediente, vamos para o terceiro emprego, na zona sul. É dia de plantão em Taboão da Serra, fronteira da capital. Vou comboiando-o, para não me perder. Percurso de quase uma hora. Taboão é uma enorme periferia, com casas inacabadas, encavaladas umas sobre as outras, em ruas cinzentas, estreitas e retorcidas. Um formigueiro de gente nos morros descalvados. Embaixo, em um vale, o pequeno pronto-socorro público onde o médico começa nova jornada, das 7 da noite às 7 da manhã. No dormitório dos plantonistas, dois beliches, geladeira portátil, um televisor e um isopor com marmitex. Tento conversar com duas médicas que comentam de colegas que vêm do Rio de Janeiro, onde "a situação está pior", para trabalhar em São Paulo. Falam de profissionais que também acumulam de quatro a cinco empregos, coisa "comum na área". Fogem amedrontadas ao pedido de entrevista. Respeitam a lei do silêncio.

Em junho, dois meses antes de visitá-lo na Secretaria do Bem-Estar Social, doutor Ronaldo me apresentara em sua casa, um dossiê de quinhentas páginas. Prontuários e documentos diversos de sua luta e vida profissional. Ele mora num apartamento antigo, próximo à Faculdade de Medicina da USP e ao Hospital das Clínicas, com a mulher e dois filhos, de 12 anos, e 10 anos.

O dossiê começa nos idos de 1992 e vem até os dias atuais. Prontuários, contracheques, fax, relatórios, cartas. Tem também recortes de jornal, uma coleção de brigas.

– Sou pessoa não grata no Conselho Regional (de Medicina), o critiquei muito e continuo criticando.

Aponta no dossiê a primeira batalha, quando ainda representava os colegas: 22 de dezembro de 1992, 10 horas da manhã, doutor Ronaldo Fiore incomoda a direção do Hospital Regional de Ferraz de Vasconcelos, nomeada pela Secretaria Estadual da Saúde  – ele está com um megafone. No início do mês, assumira a coordenação do pronto-socorro do próprio hospital, na esperança de melhorar as condições encontradas. Agora, puxa palavras de ordem de cima de um carro emprestado pelo sindicato dos metalúrgicos do lugar. A aglomeração em frente ao pronto-socorro aumenta. Faixas, frases, letras garrafais: "O hospital de Ferraz não pode fechar", "Fleury (então governador do Estado), seja responsável, com a saúde não se brinca". No ato, apenas ele, de médico, se expõe. Discursa sobre a falta de profissionais por causa dos baixos salários e está ali como um dos líderes da manifestação que ajudou a organizar com funcionários do hospital e gente do Sindicato dos Trabalhadores Públicos no Estado de São Paulo. Está chamando a atenção das autoridades municipais e estaduais para o risco de fechamento do hospital regional por falta de médicos e de equipamentos. O hospital já havia restringido o atendimento a casos de emergência. "O nível de erros médicos aumentou absurdamente. Era uma população pobre, indefesa, que reclama pouco", diz ele hoje.

Treze dias antes daquela manifestação, doutor Ronaldo entregara pessoalmente carta-denúncia ao Sindicato dos Médicos, à Associação Paulista de Medicina (APM) e ao Conselho Regional de Medicina (CRM) – com o qual ainda não havia brigado –, além de visitar jornais locais, anunciando o desastre: "Em vista da deterioração gradativa das condições de trabalho e salariais, está ocorrendo demissão de profissionais. (...) A nossa preocupação principal é em relação ao prejuízo no atendimento. Já estamos enfrentando problemas agora em dezembro e a previsão para janeiro/93 é de caos. Como coordenador do pronto-socorro, peço ajuda...".

A resposta do CRM chegou logo: "Informamos que encaminhamos cópia da missiva supracitada à Secretaria de Estado da Saúde para conhecimento e providências cabíveis". A APM veio um dia depois, anunciando decisão igual.

Depois de tanto pressionar, o grupo consegue audiência com o secretário estadual da Saúde, o médico Vicente Amato Neto, em 30 de dezembro. Como coordenador do pronto-socorro, Ronaldo Fiore expõe suas reivindicações. A reunião se transforma em debate por melhores salários, defasados em 170 por cento, como solução para segurar médicos e funcionários que deixam o hospital de Ferraz um atrás do outro.

Fim de janeiro e nada de novo. A situação só piora. Intensificam-se os conflitos entre médicos locados na ponta do atendimento com médicos da direção do hospital. O diretor geral, médico Claudomiro Barbosa da Silva, quer punir alguém exemplarmente para acalmar os ânimos. Só espera o momento certo. Um dia, decide abrir as portas do PS ao atendimento normal. Até então, uma maca bloqueava a entrada e os plantonistas selecionavam os casos mais urgentes. Vendo que o quadro continua crítico, o chefe de plantão, Lisandro Ricardo Silva, decide, com os demais profissionais, manter o bloqueio. O diretor geral vem correndo, tira a maca da porta e joga-a sobre o chefe de plantão. O agredido vai dar queixa na delegacia de polícia mais próxima. Ao chegar, recebe voz de prisão... O diretor ligara minutos antes ao delegado, de quem era amigo. O médico agredido é enquadrado em crime de atentado contra a segurança de serviços de utilidade pública. "Foi uma armação, usaram ele como bode expiatório", diz doutor Ronaldo, que visitou o colega no distrito. O chefe de plantão ficou três dias preso e continuou respondendo a processo. Doutor Ronaldo perderia o cargo de coordenador pouco tempo depois.

Para ganhar poder de fogo, em abril de 1993, ele passa a fazer parte da diretoria do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp). Não demora muito, em 6 de maio, convence o corpo de médicos e funcionários do Hospital Regional de Ferraz de Vasconcelos a aderir a uma paralisação que já atingia onze hospitais no Estado, com 35.000 servidores de braços cruzados. O secretário da Saúde, Vicente Amato, alertava para essa que poderia ser a maior greve do setor na história de São Paulo.

Hoje, doutor Ronaldo tem visão diferente:

– Questiono a greve como forma eficaz de luta na Saúde. O prejuízo para a população é muito grande. A alternativa é informar a população. Toda vez que participei de movimento em que a população estava informada, incomodamos as pessoas que comandam a Saúde e conseguimos algo mais efetivo.

A greve acabou sem reverter o quadro, que continuava grave. Em junho, um número considerável de médicos passa a freqüentar delegacias. Sem poder tratar dos doentes por falta de estrutura, registram boletins de ocorrência eximindo-se de culpa. Manchete da Folha da Tarde dizia na época: "Médicos vão à polícia narrar morte da saúde pública em SP"; outra, de O Estado de S. Paulo: "Má condição de trabalho leva médica à polícia". As ocorrências eram feitas com base no Código de Ética Médica, que diz: "É direito do médico suspender suas atividades quando a instituição pública ou privada não oferecer condições mínimas para o exercício profissional, ressalvadas as situações de urgência...".

Nada se resolvia. Gente continuava morrendo na frente do doutor Ronaldo e de seus colegas. Mais uma tentativa: ele se aproxima da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Envia carta à Comissão de Direitos Humanos da entidade no mesmo ano: "Nós, profissionais da Saúde, ficamos cada vez mais indignados e angustiados por não podermos oferecer condições adequadas de atendimento à população. Observamos aumentos significativos da morbidade e mortalidade. Temos uma série de exemplos onde sabemos tecnicamente o que fazer, porém não temos recursos (materiais, físicos e humanos). Sugerimos a montagem de uma estrutura conjunta (OAB/ Sindicato dos Médicos) para oferecer à comunidade carente a possibilidade de cobrar juridicamente a responsabilidade bem como ressarcimento (indenização) dos verdadeiros culpados pelo aviltamento dos direitos humanos na área da Saúde".

A OAB realiza o seminário "Saúde: uma Questão de Direitos Humanos" e inicia estudo para investigar se o atendimento prestado pelo serviço público à população viola o direito à saúde, um dos princípios da Declaração dos Direitos Humanos e da Constituição brasileira aprovada em 1988. Diz a Constituição: "A saúde é direito de todos e dever do Estado". É formada pela OAB uma comissão composta de três advogados e três médicos, doutor Ronaldo entre eles. Nasce a idéia de realizar blitz em hospitais. "Será de surpresa, para evitar maquiagem", dizia o doutor. "Queremos denunciar publicamente o atentado ao cidadão e convocá-lo a exigir melhor assistência. Profissionais de saúde não serão poupados, caso tenham participação direta no descaso com pacientes."

Cinco hospitais grandes, com infra-estrutura em diversas especialidades e pronto-socorro, foram secretamente escolhidos para as visitas iniciais. Em 13 de julho, data da primeira blitz, a equipe convoca a imprensa. Todos entram no Hospital do Mandaqui, único complexo hospitalar em uma região de 4,5 milhões de habitantes, na periferia, zona norte.

– Escolhi o Mandaqui porque era bem representativo do caos. Parecia hospital de guerra. Para ter idéia, veja esta foto de uma senhora de 87 anos abandonada no chão, aguardando que os parentes fossem buscá-la. Era assim, um corredor com vários pacientes, em maca, de doenças infecto-contagiosas ou não, misturados.

Metade dos leitos fechados; pronto-socorro infantil desativado; 48 pacientes em macas no corredor do pronto-socorro de adultos; déficit de 340 funcionários. À noite, a visita virou tema de reportagem no Jornal Nacional. No dia seguinte, primeira página da Folha de S. Paulo, "Blitz da OAB revela caos em hospital". Semanas depois, estimulou matéria de capa na Veja, sobre o caos na Saúde. Foi tal a repercussão, que o secretário municipal de Saúde, médico Raul Cutait, e o secretário estadual, Vicente Amato Neto, logo procuraram o presidente da OAB, João Piza.

– Estranhamente, as visitas subseqüentes foram canceladas. Se continuassem, tenho certeza de que as mudanças seriam rápidas.

Quinze dias depois, os dois secretários são substituídos.

– O governador e o prefeito não mudavam muito a situação. Eles mudavam o secretário.

Em fevereiro de 1994, doutor Ronaldo passa a integrar o Conselho Municipal de Saúde, como representante do Sindicato dos Médicos. Era relator e articulava nova seqüência de blitz em hospitais. Chama a imprensa. Outra vez o projeto pára na primeira vistoria. O secretário municipal de Saúde, agora o médico Silvano Raia, não admite a presença de reportagem. "Tira a naturalidade da visita, que deve ter um caráter técnico e interno, não público", declarou Raia, conseguindo a aprovação do conselho para o veto à imprensa.

– Ele manobrou o regulamento interno. Sem a imprensa, desmotivou o pessoal porque você tira a transparência, a divulgação para a população. Tentei reverter a decisão, mas, posteriormente, sou tirado do Conselho pelo sindicato.

O mandato de doutor Ronaldo, de três anos, se encerra em um. A gota d’água foi denunciar acordos ilegais entre médicos-empregados e médicos-diretores de hospital da rede pública. Comprou briga com o sindicato e o Conselho Regional de Medicina (CRM/Cremesp). A deterioração dos salários incentivou um tipo de corrupção conhecido no jargão médico por "esquema". Para compensar o baixo pagamento, a direção permitia que o profissional cumprisse apenas a metade do horário de trabalho estipulado em contrato. Havia casos extremos de médico contratado para plantão de 24 horas que na verdade fazia 6 horas. O resultado era equipe completa só no papel. "Praticamente, todos os médicos do serviço público, com raras exceções, estão envolvidos", revelou doutor Ronaldo. Em Ferraz e Robru, ele testemunhou tais acordos. O Estado e a Prefeitura abriam vagas. Os aprovados reuniam-se com o diretor da unidade. Era o momento de perguntar: "Doutor, qual o esquema?"

– A participação de médicos no esquema denegria a categoria. Mas o sindicato não quer saber: falou mal de médico, brigou com ele, independentemente de o profissional ser bom ou ruim.

Assim que a denúncia estourou na imprensa, o presidente do sindicato, o médico Tito César dos Santos Nery, escreveu uma carta endereçada a toda a categoria, dizendo que Dr. Ronaldo agia sozinho e contra a vontade da entidade: "O médico autor destas ‘denúncias’ falou exclusivamente em nome pessoal, sem que suas declarações reflitam o pensamento da diretoria do Simesp. O Simesp lembra ainda que não cabe ao sindicato o controle de ponto e presença dos médicos, sejam da rede pública ou privada".

Em seu meio, doutor Ronaldo só recebeu apoio expresso da presidente da Associação dos Médicos do Hospital das Clínicas, Heloísa Marques. Ela mandou um bilhete ao colega presidente Tito César: "Vimos, através desta, manifestar nossa preocupação acerca da situação do colega Ronaldo Fiore. Soubemos através da imprensa que a diretoria do Sindicato dos Médicos o afastou do cargo e parece cogitar a sua expulsão. Uma punição conferida ao colega, irá se consubstanciar em vitória para os profissionais que vêm denegrindo a imagem da categoria, que serão resguardados sob a égide de um corporativismo praticado de forma tão deletéria. Dever-se-ia aproveitar para enfatizar que não compactuamos com conluios, acordos de quem quer que seja, pois os mesmos, além de obstruir a busca de soluções mais definitivas para a questão salarial também prejudicam sobremaneira o atendimento à população".

O Conselho Regional de Medicina colocou-se contra o doutor, fazendo coro com o Sindicato dos Médicos. No início, as duas entidades negaram a existência dos "esquemas". "Não tenho conhecimento de nenhum acordo, mas sei que às vezes há problemas no cumprimento da jornada de trabalho", afirmou a médica Regina Ribeiro Carvalho, presidente do Conselho. O presidente do sindicato, Tito César, disse algo semelhante: "Essas informações não procedem".

Em 7 de abril de 1994, Ronaldo Fiore entra com representação no Ministério Público contra os secretários de Saúde do município, Silvano Raia, e do Estado, o médico Antônio Cármino de Souza. Atribui a ambos "falta de decoro e ato de corrupção", por permitirem os "esquemas". Leva em consideração o fato de os diretores de hospital serem nomeados pelos dois. Portanto, "cumprem determinações que estão de acordo com a política de saúde das secretarias". Faz referência ao artigo 52 da Constituição Estadual: "Os secretários de Estado serão responsáveis pelos atos que praticarem ou referendarem no exercício do cargo". Junto ao documento, uma série de recortes de jornal, entrevistas de colegas e uma lista de matérias de televisão que comprovam os acordos. A promotoria promete investigar.

Questionados, o secretário estadual, Cármino de Souza, determina que os médicos cumpram o horário e o secretário do município, Silvano Raia, instaura sindicância para apurar as denúncias. A investigação constata descumprimento de horário, mas não comprova os "esquemas". Logo, vaza à imprensa que Raia considera essa prática aceitável em alguns casos. O secretário costuma usar uma terminologia médica para se explicar: uma baixa incidência de médicos descumpridores de horário pode ser tratada como ‘fisiológica’". Caso seja alta, passa a ser "patológica". Doutor Ronaldo coloca em dúvida a autonomia do grupo auditor, designado pelo próprio secretário. "Equivale a mandar a raposa tomar conta do galinheiro."

A briga esquenta. Doutor Ronaldo manda fax ao jornalista Gilberto Dimenstein, que o pública em sua coluna na Folha de S. Paulo. "Ele acusa seu sindicato, o Conselho Regional de Medicina e o governo estadual de acobertarem sua denúncia. ‘Por que não discutir abertamente com a sociedade sem hipocrisia?’, pergunta Fiore." A presidente do conselho, doutora Regina, envia resposta ao jornal. Põe em dúvida a moral do colega. "O médico em questão age com a falta de ética que tanto tem denunciado. Ele não compareceu a este CRM para assumir a denúncia. Sequer apresentou provas necessárias à tomada de providências legais cabíveis a um conselho de fiscalização profissional." Doutor Ronaldo responde pela seção de cartas do mesmo jornal: "Doutora Regina mente descaradamente quando diz que não assumi a denúncia junto ao CRM. Em 7/3, protocolei a denúncia naquele conselho, contra os secretários e ‘seus’ diretores. Está registrada sob o nº 8.315/ 94. Em 14/4, enviei fax (tenho comprovante) com todas as informações solicitadas, incluindo as provas e a relação dos hospitais onde ocorrem tais ‘acordos’. Um diretor do Conselho, João Eduardo Charles, entra na batalha. A ameaça ao médico rebelde desta vez é dura. "A partir da resposta do doutor Fiori, o Cremesp abriu expediente, de acordo com o Código de Processos Ético-disciplinares do Conselho Federal de Medicina".

– O Conselho Regional bloqueou de todas as formas a apuração da minha denúncia. É o corporativismo extremo.

Dois anos mais tarde, em 26 de setembro de 1996, o médico José da Silva Guedes, secretário estadual da Saúde, confirmaria em declaração à imprensa a existência dos "esquemas". Até fez a conta: "Na maioria dos casos, os médicos são contratados para quarenta horas semanais e acabam cumprindo 24 horas".

– O secretário admite que faz o acerto porque o Estado paga pouco. A que ponto a gente chegou e que país é o nosso?

A representação dos "esquemas" entregue ao Ministério Público não foi a primeira do doutor Ronaldo. Um ano antes, em 25 de agosto de 1993, ele ingressou com denúncia sobre o abandono do Pronto-Socorro Municipal Júlio Tupy e de postos de saúde nas redondezas, o que significava risco à população de 16 bairros de periferia. Setecentos moradores assinaram o documento. Adiante, em outra, em 1995, acusou a Secretaria Estadual da Saúde de promover contratações irregulares. Desde 1992, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, maqueiros começavam a trabalhar em hospitais do Estado sem concurso público, sem registro, sem direito a 13º, FGTS e férias. Esses funcionários eram apelidados de "3.1.3.1". Uma referência ao código orçamentário pelo qual a verba para essas contratações era discriminada: 3.1.3.1. O dinheiro utilizado ficava a cargo da direção de cada hospital, assim como os critérios de seleção de pessoal e o valor de remuneração. Os "3.1.3.1" não recebiam hollerith, mas desempenhavam horário definido, batiam cartão ou assinavam livro de ponto, descartando a desculpa de que seriam autônomos. Na representação, doutor Ronaldo expunha sua preocupação: "Como não há controle de qualidade nessas ‘contratações’, principalmente em relação aos profissionais da área médica e paramédica, os riscos para a população atendida nesses hospitais estão ampliados".

O governo confirmou à imprensa a falta de fiscalização: "O coordenador da Região de Saúde de São Paulo e Grande São Paulo, Olavo de Moura Filho, admite que não há lei regulamentando as contratações. A Secretaria de Administração informou, pela assessoria de imprensa, que tem o controle apenas dos servidores concursados".

O hospital em que eu trabalhava (Ferraz de Vasconcelos) chegou a ter trezentos funcionários nessas condições. Um sistema que seria temporário começou a ficar definitivo e corrupto. Tinha até médico que só assinava o recibo e recebia sem trabalhar.

O secretário municipal de Saúde de Ferraz de Vasconcelos, o médico Luiz Antônio do Nascimento, emitiu ofício, em julho de 1994, pedindo um favor ao deputado estadual Toninho da Pamonha: "Estamos enviando a Srta. Rosângela F. de Souza a fim de conversar com vossa acessoria (sic) no intuito de viabilizar sua colocação no mercado informal ou formal de trabalho". No caso, segundo doutor Ronaldo, a colocação seria no Hospital Regional de Ferraz. Ele anexou a prova do que denunciava: dois cheques-salário assinados pelo diretor-geral do hospital, o médico Paulo Sérgio Angelis, e pelo diretor administrativo, o advogado Wilson Benvenutti Júnior, datados de 11 de novembro de 1994 e de 19 de janeiro de 1995. Rosângela conseguira a funcão de escriturária. Era uma "3.1.3.1.".

O clima no trabalho do doutor Ronaldo começava a ficar insuportável. Vários colegas não lhe dirigiam a palavra. E o diretor não esqueceria tão cedo essa denúncia. Mas dava para ficar pior. Doutor Ronaldo reuniu um pequeno dossiê, no segundo semestre de 1995, com catorze prontuários de comprovado erro médico por negligência de colegas e/ou falta de estrutura em Ferraz, e entregou ao Ministério Público, anexando ao documento um manifesto com assinaturas de funcionários que testemunharam o abandono do hospital. Ele escreveu: "Encaminho esta representação para que o Ministério Público possa encaminhar ações indenizatórias em favor das famílias... Assumo a responsabilidade das opiniões por mim emitidas, às quais dou caráter técnico, baseado nos meus conhecimentos médicos".

Seu cálculo era que, de cada dez mortes ocorridas no hospital, quatro eram por negligência. "Por enquanto, só tenho como provar catorze, mas o número de mortos nos últimos dois anos deve passar de duas centenas." A nova denúncia virou manchete em vários jornais, como o irreverente Notícias Populares: "Mancada liquida duzentos no hospital - pediatra denuncia a matança". O secretário estadual da Saúde, José da Silva Guedes, se pronunciou favorável à punição dos responsáveis pelas mortes. "Iremos investigar minuciosamente todas as denúncias." O Conselho Regional de Medicina recebeu cópia do documento e abriu sindicância. Até a polícia civil prometeu investigar. Enquanto as providências caminhavam a passo de tartaruga, o clima ficava tenso para doutor Ronaldo. "Eu e mais 20 funcionários (auxiliares de enfermagem e enfermeiras), que fazem parte da comissão que denunciou as irregularidades, estamos sofrendo repressão de alguns médicos do hospital e da direção." A diretora clínica de Ferraz, a médica Maria Luiza Zeppelini, afirmou, na ocasião, que o Conselho Regional de Medicina verificaria se Ronaldo faltara com a ética. "O hospital não fornece prontuários e não os libera nem mesmo para o juiz."

Pouco antes de doutor Ronaldo se demitir de Ferraz, o diretor geral do hospital, Paulo Sérgio Angelis – o mesmo que assinou o cheque à indicada do deputado Toninho da Pamonha –, denunciou-o ao Conselho Regional de Medicina por "violação ao segredo médico". Alegou que Fiore havia ido contra artigo do Código de Ética Médica que diz ser "vedado ao médico facilitar o manuseio e conhecimento dos prontuários, papeletas e demais folhas de observações médicas sujeitas ao segredo profissional, por pessoas não obrigadas ao mesmo compromisso". Doutor Ronaldo usou outro artigo do mesmo código, para retrucar. "É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente."

As representações, investigações, sindicâncias provocadas por doutor Ronaldo não produziram os resultados prometidos. Mas a decepção é ainda maior com o comando de sua categoria.

– Fiz um relatório de minhas denúncias ao Conselho Regional e esperava que me chamassem para apresentar as provas, mas até hoje não me chamaram para ver os prontuários. Isso foi em 1995.

Apesar de tudo, não desistiu. Hoje, além de analisar prontuários de quem o procura, acaba de elaborar sua mais nova arma: o manual Erro Médico: Defenda-se, para a Associação de Vítimas de Erros Médicos, em São Paulo. No manual, descreve os erros mais comuns e informa aos pacientes seus direitos "Procure sempre identificar os profissionais que estão lhe prestando atendimento; sempre que a situação permitir, é interessante que um acompanhante permaneça na sala durante avaliação médica; é muito importante saber que todo paciente deve ter um prontuário médico". E assim segue o médico-Quixote, nestes tempos de pouca coragem, acreditando no juramento de Hipócrates.


Este texto foi extraído da revista Caros Amigos nº 20 edição de novembro/1998.
Autorizado por Editora Casa Amarela: http://www.carosamigos.com.br/
e-mail: casamar@uol.com.br
Foto: Juan Esteves.



Comentários: fiore@meningite.com.br

Incluído em 05/11/2001 02:23:55 - Alterado em 20/06/2022 22:35:33





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